Buenas!,
Quem viu o Papa Francisco afirmar que brasileiro não tem salvação e se surpreendeu é porque não anda lendo meus recentes escritos. Já disse aqui que temos de ser estudados, que não nasceu para o sucesso e que, em muitas ocasiões, é omisso. Nunca esquecendo, caros leitores ávidos pelo já citado hábito do “cancelamento virtual”, que exerço o direito sagrado da generalização crítica, autorizada por “habeas corpus” literário.
Baseado nisso, vocês hão de convir que não cometo nenhum crime digno de prisão quando afirmo que sou obrigado a concordar com a frase que diz que não temos salvação: Francisco atingiu o ápice da precisão. Mesmo com a rima, vou tentar explicar, antes que me chamem de “hermano boludo”!
Primeiro vou atualizar o extraterrestre que acabou de pousar nesse planeta ou o futuro leitor de minhas palavras. No final de maio do ano II da pandemia, o Papa Francisco estava fazendo uma benção presencial em Roma, quando um padre brasileiro pediu que ele abençoasse nosso povo. Eis que recebe essa frase: “- vocês não tem salvação! É muita cachaça e pouca oração!”
Lida a seco, sem um bom gole de malbec de Mendoza, a frase poderia soar estranha, agressiva diriam alguns patrulheiros da moral e dos bons costumes. Porém, para quem conhecia Jorge Bergoglio antes da fama e depois, já no exercício da sagrada função papal, tem ciência de que ele, antes de qualquer outra atribuição, é argentino. Poderia encerrar a crônica aqui, tomar mais uma taça de vinho, esperar a carne dourar na grelha, mas vou aprofundar um tanto essa explicação para aqueles que não são patrícios.
Começando por esse termo tão pouco conhecido, mas utilizado com ênfase por Blau Nunes, o gaudério dos pampas eternizado no livro “Contos Gauchescos”, publicado em 1912 por Simões Lopes Neto, em Pelotas. A localização da publicação tem mérito pois qualifica a proximidade do autor com os vizinhos do Prata, no caso, o rio de La Plata, que divide Argentina e Uruguai.
Localizei mas não expliquei. Blau “era um guasca sadio, leal e ingênuo; precavido e perspicaz”, que chamava os seus próximos de “patrícios! Ao fazer isso, não está falando de brasileiros, mas sim dos gaúchos, dos viventes que se criaram soltos, sem amarras fixas criadas por fronteiras artificiais mal definidas pelos governantes do século XIX. Eles viviam montados em seus cavalos, troteando pelo pampa, sem importar-se de qual lado do rio Uruguai ou do rio Prata, estavam.
Lutaram em muitas pelejas, é verdade, mas as motivações eram, em geral, políticas. Inclusive, os do lado de cá enfrentavam a polícia quando necessário para poder negociar suas mercadorias com os vizinhos ao invés de esperar elas aportarem (mais caras) do Rio de Janeiro, o que é bastante lógico, não concordam?
Nós, aqui no Rio Grande do Sul, convivemos com eles até hoje. Claro que a pandemia e as sucessivas crises econômicas reduziram o afluxo, mas bastava chegar dezembro para vermos aquela fila de carros com placas pretas (antes de inventarem a placa do Mercosul) tomando conta das rodovias que ligavam a fronteira ao litoral norte gaúcho e, claro, o catarinense. Antigamente, quando paravam em restaurantes de beira de estrada, tinham o costume de perguntar: – “Quanto custa?”. Ao ouvir a resposta, lascavam, em um rasgado portunhol recheado de sarcasmo: – “Dá-me dos!”, típico do estilo portenho e do poder da outrora dolarização da economia.
Era praxe vermos aquelas aglomerações (quanta saudade desse tempo, não importando a língua…) em que alternavam cervejas com o mate individual à tiracolo. Aliás, o velho costume da roda de chimarrão, em que nós passamos a cuia de mão em mão ficou no passado, com as medidas que tivemos de adaptar a partir do ano I da pandemia. Estamos copiando esse costume dos vizinhos hermanos.
A convivência é tamanha, que muitos deles por aqui fincaram suas bandeiras e montaram negócios, nunca mais abandonando essas paragens, tal a proximidade de costumes. O churrasco, por exemplo, tem suas diferenças, mas cada dia que passa, mais amigos estão adotando o modelo “parrilla” de assar carnes.
Em suma, o que temos aqui é uma simbiose que nos aproxima, apesar das rusgas históricas e futebolísticas. Conviver com os hermanos é saber que iremos dar risadas, se divertir e ficar irritados com as provocações, caso comecemos a debater futebol, paixão tão irrestrita e passional, não importa o lado da fronteira em que esteja, seja ela brasileira, uruguaia ou argentina.
Encaminhando para a conclusão, digo que a chacota do Papa Francisco não é nada além do que nós, gaúchos, já estamos acostumados devido à convivência. E digo mais: a sua ironia veio bem a calhar, afinal, se alguém tem autoridade moral para dizer isso, é o Bergoglio. Ele já deu provas mais do que suficientes que é um cidadão bonachão, divertido, carismático e inteligente. Eu que não creio não deixo de o admirar por suas qualidades agregadoras. Mesmo quem não é católico ou cristão, não tem como dizer o contrário.
Aqueles que se ofenderam por serem chamados de cachaceiros, pelo amor de Deus!, digo, do seu emissário na Terra, segundo o catolicismo. O brasileiro deveria ter orgulho dessa iguaria nacional, tão famosa mundo afora e, ao invés de resmungar, equilibrar pródigas orações com a mesma quantidade de cachaça, tão necessária para encararmos o mundo atual. Quem sabe assim, encontrará a salvação! Senão, ao menos ficará sorridente…