Buenas!
Páscoa é sinônimo de renovação, esperança e um tanto de fé. Ao menos era isso que minha avó Elisa dizia quando eu incomodava pedindo ovos recheados de amendoim com cobertura de chocolate, também chamados de “cri cri”. Meses antes da páscoa ela pedia para guardarmos as cascas de ovos, cuidado para abrir só a “tampa”. O trabalho coletivo entre os netos que se aglomeravam à volta da mesa da cozinha, pintando as cascas vazias, era o mais divertido, apesar do olhar rigoroso e dos beliscões fininhos que recebíamos se fizéssemos alguma bagunça. Bons tempos…
Como disse, bons tempos aqueles em que não tínhamos a oferta de ovos caríssimos com uma miséria de chocolate, tudo para atentar as crianças, que só querem saber do brinquedo que vem dentro. Eu queria o “cri cri”.
O assunto que me trouxe até aqui é a páscoa e sua simbologia que, para a criança dentro de mim, eram os ovos já citados (que não tem relação com a origem da páscoa); para o adulto que frequentou a igreja e posteriormente a abandonou pelos livros e pela história, o significado vai um pouco além.
Aprendemos que a sexta-feira santa marca a crucificação de Jesus e o domingo a ressurreição, redimindo nossos pecados. Com isso, Cristo tornou-se o “Agnus Dei”, o cordeiro de Deus. Essa expressão é uma adaptação da cultura hebraica. Antes de Cristo, cada família deveria imolar anualmente um cordeiro de verdade como agradecimento ao “pessach” (daí a origem da palavra páscoa). Nessa data celebra-se a passagem do anjo que matou os primogênitos de todos que não sacrificaram um cordeiro e pintaram suas portas com seu sangue. Foi a última das dez pragas do Egito, lembram?, garantindo a fuga e a sobrevivência errática no deserto, até encontrar a chamada terra santa. Terra essa que está em litígio quanto à propriedade até os dias de hoje, diga-se de passagem.
Ou seja, para os hebreus, imolar o cordeiro simbolizava o sacrifício cruel dos inocentes primogênitos egípcio, que representou sua liberdade. Para os cristãos, o sacrifício supremo de Jesus (que não teve muita escolha, segundo o espetacular romance “O evangelho segundo Jesus Cristo”, de Saramago) teve um grau de altruísmo incomparável, pois sua entrega, segundo a interpretação do novo testamento garantia a todos um perdão por jurisprudência utilizado até os dias de hoje.
Em um evento realizado há alguns anos, consegui invadir, legalmente, diga-se de passagem, os bastidores e debater em alto nível (na verdade, mais ouvi do que falei, sei ser humilde, quando convém, é claro) com o mais popular dos intelectuais brasileiro, o professor e historiador das religiões Leandro Karnal. Era perto da páscoa e os dois ateus debateram a representatividade dessa data, vejam a pretensão.
Citei Machado de Assis e ele comentou o processo de “branqueamento” que viveu em seu tempo que comentei numa crônica passada, costurando com uma pintura: “A redenção de Cam”, do pintor espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos, de 1895. Mas o que essa obra tem a ver com a páscoa?, perguntará um dos meus quase trinta leitores. Vou descrevê-la, mas também colocá-la como ilustração deste texto para ajudar a interpretação. Quem foi professor um dia, nunca deixará de ser, penso.
A figura central é um menino recém nascido no colo de sua mãe, na mão esquerda uma laranja e a mão direita levantada em direção a uma senhora idosa e negra ao lado, enquanto o pai está sentado à entrada de uma casa simples e humilde, um retrato típico de famílias que surgiram após o final da escravidão no Brasil. Uma pintura muito bem feita, diga-se de passagem e recheada de detalhes que beiram a ironia, que, sem as explicações que recebi do professor Karnal, não teria as observado com tanta presteza.
Notaram que os dedos do menino estão como que abençoando, do mesmo modo que o menino Jesus aparece em muitos quadros da idade média e inclusive na obra “A virgem das rochas”, de Leonardo da Vinci? A senhora negra e idosa imagino que seria sua avó, provavelmente uma ex-escrava, pela data da pintura. A laranja na mão esquerda representa uma “orbe”, ou seja, o mundo. Outra representação pictórica em que Jesus era retratado segurando uma esfera, ou seja, o mundo estará protegido e salvo com seu sacrifício. No caso, de Jesus.
Caros leitores, conhecem o quadro mais caro do mundo? É o “Salvatore Mundi”, de Leonardo da Vinci. Nele, Jesus abençoa com a mão direita e segura uma esfera transparente na esquerda. Fazendo uma analogia, esse menino com a laranja, “domina” o mundo dessa família, pelo simples fato de ter nascido branco, diferente dos outros membros. Notem o sorriso irônico do pai, olhando de soslaio para o filho, orgulhoso de sua “competência”.
E, suprema das ironias, ao menos para mim, foi o autor ilustrar essa cena simples (sem considerarmos as implicâncias que comentei) com os ramos de uma palmeira. Quem um dia frequentou a igreja, não importa qual, sabe que uma das datas mais fortes do cristianismo é o domingo de ramos, que antecede a páscoa, representando a entrada de Jesus em Jerusalém onde ocorreria sua imolação na cruz, aquela que redimiu nossos pecados para todo o sempre. Com isso o pintor coroou suas referências religiosas.
Ou seja, essa pintura do século XIX apresenta um cenário de um Brasil miserável que se foi (mas lhes garanto, não para todos), relacionando um menino branco como “salvador” de sua família por ter a cor de pele branca. E essa interpretação não é só minha, gerou polêmicas, mas traz luz em excesso para a realidade em que viviam (e vivemos).
Não sei vocês, mas a renovação representada pela páscoa deve ser lembrada não só pelo sacrifício feito por Jesus, no caso dos cristãos, ou dos primogênitos do Egito e dos cordeiros, no caso dos hebreus, mas principalmente na renovação e esperança que só a fé na arte pode proporcionar ao ser humano.