Buenas!
Hoje resolvi dar uma aliviada no discurso; estava me tornando monotemático. Também pudera, é difícil não falar do que nos consome há mais de ano. Mesmo assim, hoje não vou falar das 300 mil vidas que foram tomadas por essa pandemia, nem dizer que muitas dessas perdas poderiam ser evitadas se não tivesse tanta desinformação e desrespeito, ou ainda, se a vacina já circulasse há mais tempo entre nós, nem falarei da dificuldade de governantes tomarem decisões diante dessa crise de proporções estratosféricas. Hoje quero falar de música.
Mas não qualquer canção; quero falar, na verdade, de uma banda, mais precisamente, de uma apresentação. Falarei do maior show que assisti na vida! Nesse mar turbulento de notícias ruins, não há dúvidas do quanto a memória pode ser um barco a motor, mesmo se insistirmos em usar somente os remos das lembranças afetivas…
Isso aconteceu há quase trinta anos, contava eu parcos 21 verões naquele inolvidável outono de 1994. Acabara de concluir o curso de formação da firma que ainda me acolhe e garante o meu sustento. Nesse ínterim, a inquieta pessoa que era (e ainda sou) soube que aconteceria em Porto Alegre o show da Legião Urbana. Sim, meus vinte e tantos leitores, é deles que falarei.
Eu era fã da Legião há poucos anos. Nunca fora um adolescente ligado à música, até completar a maioridade legal no Brasil, quando tive acesso a fitas-cassetes deles (nessas fitas gravávamos músicas, caso alguém com menos de 30 anos leia esse texto). Não me custa afirmar aqui que essas músicas causaram uma revolução em minha pessoa.
Não vou listar minhas músicas preferidas, precisaria de muito espaço para isso. Citarei “Pais e filhos” tão-somente, pois foi crucial para a compreensão da dissonante relação com minha mãe, aquela mesma que sempre tentou me educar decentemente e eu, por pura birra, recusava. O verso que diz: “você culpa seus pais por tudo e isso é um absurdo, são crianças como você” abriu meus olhos para a redundância infantil da juventude…
Voltemos àquele dia em que desembarquei do ônibus depois de seis horas de viagem, e lá chegando fui tomar um cafezinho e comprar uma camiseta da banda nos camelôs da rua da praia.
Envergando a camisa nova e armado de um walkman com algumas daquelas fitas que eu mesmo gravei, parti rumo ao Gigantinho, ginásio onde ocorreria um dos últimos shows daquela banda, coisa que ainda não sabíamos. Era meio da tarde de um outono típico, nublado, mas não frio. A fila era considerável, fiquei entre os 100 primeiros, com sorte, poderia ficar perto do palco. Vã ilusão…
Imaginem-me ali, sob a cobertura do ginásio, apreciando a garoa que caia ao lado, entretido com meu fone de ouvido, fazendo amizade com duas meninas que também chegaram cedo. Não sabia então, mas aprendi que a identificação musical estreita laços, ainda mais para um tímido jovem sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior.
Pois o paraíso não durou para sempre para Adão e Eva, imaginem para mim. Quando começaram a mexer os portões visando a abertura duas horas antes do show, a turba lá atrás esqueceu que eram animais racionais e começaram a empurrar os primeiros da fila, eu inclusive, por óbvio.
Sabem quando vocês estão com as mãos ensaboadas e apertam o sabonete nas mãos e ele espirra longe? Foi isso que aconteceu comigo. Praticamente conduzido pela massa humana, vi de relance o fiscal retirar o ingresso de minha mão levantada, quase pedindo socorro, como um afogado faria em águas revoltas.
Sobrevivi a onda desse mar em ressaca e postei-me o mais próximo possível do palco daquele ginásio enorme que adentrava pela primeira vez na vida. As meninas que me usaram de bote salva-vidas para adentrar com um mínimo de arranhões permaneceram próximas. O lugar ficou lotado, não era fácil respirar. Talvez não lembrem, caros leitores, mas saibam que um dia pudemos nos aglomerar sem necessitar distanciamento ou máscaras protetoras, acreditem!
O show foi o melhor de todos os tempos, diz minha memória afetiva. Assisti muitos outros depois, e vivi a vida toda em uma cidade pequena que até recebia vez ou outra apresentações de renome nacional, contudo, aquele espetáculo era de tal magnitude que hipnotizou minha atenção. Custa confessar, mas as músicas eram tão inebriantes que, sem eu notar a aproximação, uma das meninas que eu protegia na entrada agarrou-me e lascou um beijo, um daqueles que fazem parte da formação moral de qualquer um…
Sim, eu fui um dos últimos românticos (hão de concordar, basta ir até o final do texto). Renato Russo volta para o bis com alguns crisântemos brancos. Após entoar mais umas duas músicas que fizeram a estrutura do ginásio estremecer com o coro da plateia, ele joga as flores ao público e eu, como um paladino diante do inimigo, conquistei um botão daquela flor. E, num arroubo digno do jovem Werther, entreguei para a menina enrubescida ao meu lado. Na saída, tímido como de costume, não pedi telefone, nem guardei o nome, ficando somente com a memória da noite inesquecível.
Admito, foi piegas esse desfecho, não posso negar. Com o tempo, evoluí e perdi um tanto da inocência, pois “há tempos o encanto está ausente” (…) “quando a esperança está dispersa.” Contudo, lá no âmago de meu ser, ainda guardo algo daquele jovem sonhador, afinal, ouço a Legião Urbana quase diariamente e (guardem esse segredo) mantenho intactas algumas pétalas daquele crisântemo roubado em uma agenda de outrora.
Não falarei do momento atual, repito, mas quero encerrar com uma frase que Renato retirou da Bíblia, um resumo do que todos precisamos cultivar, mais ainda nos pandêmicos dias atuais: “é só o amor que conhece o que é verdade”!
P.S. O cronista, quando escreveu a crônica, não sabia que o cantor Renato Russo estaria de aniversário essa semana. Bela coincidência…