Para a direção clínica do hospital, todos os procedimentos adotados foram corretos
Já tinha nome, quarto preparado, estrutura montada e uma família feliz. Tudo corria dentro da mais absoluta normalidade, não fosse pela chamada toxemia ou doença hipertensiva específica da gravidez (DHEG), a pré-eclâmpsia. O fato, não tão incomum de acontecer durante a gestação, poderia ter ocorrido em qualquer cidade do mundo, incluindo aí Sant´Ana do Livramento. E foi, justamente, na Santa Casa de Misericórdia que os sonhos de maternidade e paternidade foram rompidos sem que restasse qualquer chance de recuperação. A madrugada da última quarta-feira (15), enquanto boa parte da cidade ainda dormia, em um cômodo em uma das milhares residências santanenses, o sonho de ser mãe e pai deixava de existir. Com dores, a mãe, de apenas 23 anos de idade, cuja permanência em casa havia se dado apenas cinco dias antes da última internação, sentia que algo estava errado. As dores na barriga vieram acompanhadas de um sangramento e com a dúvida de saber se o rosto que estava prestes a vir ao mundo o seria com ou sem vida. Infelizmente, nas horas que se seguiram, somente a segunda opção foi marcada. O caso ocorrido, nesta semana, na Santa Casa de Misericórdia estava sendo monitorado pela Defensoria Pública com a necessidade de envio da gestante para outra cidade já que tratava-se de uma gravidez de risco. Em posse da liminar que determinara a sua imediata remoção para outra unidade que pudesse oferecer o tratamento de UTI Neo Natal, a família travou uma luta contra o relógio, e perdeu.
A família
Josiane Vargas, 30 anos, havia sido internada na Santa Casa de Misericórdia dias antes de perder o bebê. A gestante foi diagnosticada com a necessidade de obter cuidados especiais para poder levar a gravidez até o final. De acordo com o marido, os médicos a mantiveram internada em função da pressão alta e dos sérios riscos ao bebê até a sexta-feira dia 10 de maio. “Nesse meio tempo, nós já havíamos conseguido até a liminar para transferi-la para outra cidade, isso porque o médico que estava atendendo ela na Santa Casa nos disse que seria necessário retirar o bebê, mas, em razão da falta de estrutura para esses casos na cidade, seria necessário fazê-lo em local melhor aparelhado. Teríamos que transferir para outra cidade por que nosso filho nasceria de forma prematura. Então, conseguimos a ordem judicial e esta foi repassada para a Secretaria Municipal de Saúde e ficamos aguardando as 48 horas que foram dadas como prazo”. Relatou William Severo, 25 anos. Segundo relato do marido, ao perceber a demora para o cumprimento da liminar, o mesmo foi procurar a Secretaria de Saúde do município para saber se a mesma seria cumprida em tempo. “Lá me informaram que haviam enviado a liminar para Santa Casa e eles estavam trancando porque a médica Maria Helena havia dito que o caso da minha esposa não seria urgente e que havia casos mais urgentes na fila. Foi dito que outras pessoas estavam em situação mais urgente que a dela e que o caso da minha esposa seria “apenas” pressão alta e, por isso não foi transferida. Isso foi agravando o caso. Na sexta-feira ele teve alta e seguiu tomando os medicamentos. Ainda assim, a pressão oscilava mesmo tomando medicamento. No domingo, retornamos ao hospital por que ela estava sentindo dores. O médico então nos informou que ela havia contraído uma infecção urinária e receitou outros medicamentos”, disse ele com os olhos completamente marejados. Enquanto carregava nas mãos, a certidão de óbito do filho, e na cabeça a certeza de que a vida do seu filho poderia ter sido salva, William ainda relatou que a esposa começou a sentir fortes dores por volta da meia noite de terça-feira, dores estas que vieram seguidas de sangramento na madrugada de quarta-feira. Mal poderia imaginar que aquela era uma reação natural do corpo da mãe que já não reconhecia Diana como um ente vivo da família. A esta altura, durante a madrugada, o bebê já havia morrido. “O médico nos disse que ela iria ter dores, mas que essas seriam em função da infecção urinária, por isso não pensamos no pior. Eles não fizeram nada por nós. Eles poderiam transferir a minha esposa porque sabiam que era um caso de risco. Já tínhamos até conseguido a ambulância e sabíamos que tinha vaga na UTI Neo Natal em Bagé. Era só a médica transferir. Total falta de compreensão e de amor à vida. Agora estamos aqui, tentando enxugar as nossas lágrimas. Eles nunca nos informaram na sexta-feira quando ela teve alta que minha esposa ainda estava na fila de espera da central de leitos. Se a alta fosse dada, o que de fato ocorreu, ela perderia a vaga na fila. Deixaram nosso filho morrer”, desabafou o pai.
O hospital
Procurada pela reportagem, a médica Maria Helena, que também é diretora clínica da Santa Casa de Misericórdia, disse que a paciente esteve realmente internada juntamente com outras duas pacientes que também apresentaram os sintomas pressão alta. “Ela estabilizou a pressão e estava regulada na central de leitos do Estado. Fica difícil de transferir a gestante porque precisávamos de dois leitos, ou seja, um para ela e outro para o bebê. Ainda assim, ela estava sendo atendida”, relatou. Ainda de acordo com Maria Helena, o médico fez os exames para saber se havia a indicação de retirar o bebê antes do tempo ou não. “O resultado dos exames não apontou essa necessidade. A pressão foi então regulada, ela foi estabilizada, permanecendo internada na Santa Casa até que a alta foi dada no dia 10 com a indicação de que a mesma fizesse repouso em casa e que procurasse o médico que a acompanhou durante o pré-natal”, disse. A diretora clínica disse que, segundo o relato que obteve do médico que atendeu Josiane na quarta-feira, esta teria chegado na Santa Casa já com sangramento e foi constatado que o bebê já não respondia os sinais. “Ela informou ao médico que a perda de sangue começou a se dar por volta das 4h da madrugada e era nessa hora que ela deveria ter procurado o hospital. Não que isso tenha sido determinante, mas temos que trabalhar com todas as hipóteses. Não sei quantas horas de óbito já tinha, mas nunca foi retirada da Central de Leitos do Estado. O que acontece é que no momento da alta desvincula do Estado. Ela estando estabilizada não tem por que ficar esperando transferência”, frisou. Questionada sobre se esses foram todos os procedimentos corretos adotados no caso, a médica disse que pelo que está registrado no prontuário, tudo o que foi feito está em acordo com a necessidade que o caso apresentou. “Não foi retirada a criança porque não havia indicação. Entendo que a família estava com medo, mas sem indicação ninguém pode retirar. É preciso que alguns parâmetros mostrem essa necessidade, o que não foi mostrado pelos exames”, afirmou ela.
Menos um na família
No último dia 14 de abril, a família havia realizado o tradicional Chá de Fraldas para esperar a chegada de Diana. Agora, mesmo que este não seja um caso isolado ou único, a família observa o pai que não irá brincar com a filha e a mãe que não irá amamentar. Pelo contrário, a família enterrou o pequeno e franzino corpo de Diana em um cenário cinzento dolorido cuja marca deverá permanecer por um longo tempo no seio da família. “Nós poderíamos ser três, estávamos preparados para ser três. Já éramos três, e nos tiraram o direito de ver nossa filha nascer”, encerrou o pai.