dom, 24 de novembro de 2024

Variedades Digital | 16 e 17.11.24

Sem possibilidade de cura, paciente com câncer revê cadela de estimação

Devido à ação dos fortes medicamentos para a dor e à progressiva fraqueza, Rossvelt Medeiros Laguna, 67 anos, cochilava na manhã da quarta-feira, 17 de abril, no leito B do quarto 3015 do Núcleo de Cuidados Paliativos (NCP) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), localizado na Unidade Álvaro Alvim (UAA), no bairro Rio Branco. O entra e sai da equipe assistencial, a conversa da reportagem de GaúchaZH com a filha, Leonice da Costa Laguna, e a ansiedade que dominava o ambiente pelo grande encontro aguardado para breve não sustentavam seus olhos abertos por mais do que segundos.

Homem de pouca fala, pronunciava-se então menos ainda, as palavras quase ininteligíveis decifradas pela primogênita, atendente de lavanderia de 34 anos, que aproximava o rosto para compreender os sussurros.

— Saudade — ele conseguiu dizer, quando questionado sobre a visitante que logo provocaria um burburinho de encantamento e pedidos para fotos.

Padecendo de um câncer de pâncreas com metástases em órgãos vizinhos, Rossvelt, o “Seu Rose das motosserras”, como ficou conhecido em Mostardas, no Litoral, esperava por Sol, a guaipeca malhada em preto e branco que vinha sendo sua companhia mais próxima nos últimos quase cinco anos (ele era separado da mãe dos dois filhos havia anos). Em uma unidade que acolhe pacientes com enfermidade grave e incurável para alívio dos sintomas, a pet terapia do NCP tem uma característica que a torna especial: o doente recebe a visita do seu próprio animal de estimação, e não a de um cachorro ou gato especialmente treinados para alegrar locais tomados por sofrimento e más notícias.

O programa acaba de ser implementado pelo HCPA, e Rossvelt foi o segundo beneficiado. Para que seja autorizado a entrar, o cão — poderão ser aceitos também gatos, coelhos e pássaros, entre outros — precisa estar com a caderneta de vacinação em dia e de banho tomado. Deve ser apresentado ainda um atestado de boa saúde, assinado por um veterinário.

Sol chegou trazida pelos irmãos de Rossvelt. Tremelicava tanto ao avistar Leonice, em um misto de nervosismo e euforia, que a caixinha de transporte “quase saiu voando”, na descrição da filha. Antes de subir ao terceiro andar, a cachorra parou na recepção para a checagem dos documentos e ganhou um crachá de visitante, preso à coleira. Estava pronta para rever o dono, 10 dias depois do último contato.

Rossvelt — o nome teria sido tirado de um livro de história, pelo que Leonice ficou sabendo — foi diagnosticado com câncer no início do ano. Começara a se sentir mal e inapetente em dezembro. Um médico apostou em uma infecção urinária. Consultas e exames posteriores em Porto Alegre, onde vive a filha, revelaram o que de fato estava ocorrendo no organismo do ex-granjeiro, habilidoso em lavouras de arroz. Dos quase 90 quilos, o homem de 1m80cm definhou para pouco mais de 60.

Em janeiro, Rossvelt passou a morar com Leonice no bairro Santo Antônio. Sol, resgatada ainda filhote de gente que a maltratava, ficara em Mostardas. Inconformada com a ausência do dono, escondia-se no vão embaixo da casa quando o caçula ou a nora de Rossvelt apareciam para abastecer os pratos com água e ração, e só saía para comer depois de se certificar de que estava sozinha outra vez. Tristonha, emagreceu.

Até o diagnóstico do tutor, a cadela estava habituada a andar no encalço dele. Latia para a clientela, mas, repreendida com veemência, nunca atacou ninguém. A qualquer tentativa de afago de outras pessoas, estremecia, ressabiada com as agressões do passado. Acomodava-se em um pedaço de pano ao lado do técnico enquanto ele lidava com as máquinas de corte, mas se levantava a qualquer movimento.

— Se ele for 200 vezes até o portão e voltar, ela vai junto, nos pés dele, 200 vezes — contou Leonice no hospital, poupando o pai do esforço da entrevista. — E sempre espera no portão quando ele sai.

A tarefa da cachorrinha nanica e atarracada, de largada, não foi fácil. Ela sucedeu a Beethoven, um híbrido de cocker e poodle afeito a malandragens. Leonice riu ao se lembrar de que Rossvelt ensinou o próprio cão a se esconder para escapar do banho – e lá saía o dono a procurar pelo bicho na hora da água. Após a morte de Beethoven, com 13 anos, Rossvelt precisou de dois anos para se recuperar, até amadurecer a vontade de adotar um novo mascote. Leonice aplicou uma mentirinha inocente ao levar a pet até o pai.

— Falei que ela era um anjo, mas claro que não era um anjo — recordou, rindo.

A filha teve participação também na escolha do nome:

— Ela veio para ser uma segunda luz na vida dele.

Com o agravamento do tumor do idoso, a família decidiu trazer a cusca para a Capital. Transcorridos quase dois meses de separação, ele precisava de Sol, e vice-versa. Leonice jurou ser verdade o que testemunhou no reencontro: com a cabeça repousada na perna do melhor amigo, a cachorra chorou. Escorriam lágrimas — “sim, lágrimas!” — dos olhos do bicho. Sol passou a dormir debaixo da cama dele, e o único fator a lhe tirar a atenção passou a ser Frederico, gato de estimação da atendente de lavanderia. O histórico da inquilina recém-chegada a condenava e recomendava prudência: Sol matou um sem-número de galinhas e pintos no quintal da morada no Litoral.

— Mas ela nunca saiu do pátio — frisou Leonice, justificando que a cadela só liquidou com as aves intrusas, não as que ocupavam seus devidos poleiros pela vizinhança.

Na semana passada, Sol adentrou o quarto do NCP nos braços de Leonice. Rossvelt despertou e pareceu mais disposto de imediato. O encosto da cama foi erguido para que ele ficasse sentado.

— Não falei que você viria ver o véio? — falou Leonice para o animal, depositando-o sobre o cobertor puído que tapava as pernas do acamado.

— Está tremendo — constatou Seu Rose, acariciando a pet, que exibia um enfeite na cabeça e uma espécie de gola cor de laranja, adereços recebidos após o banho da véspera em uma pet shop. — Está bem comportada. Estando junto comigo, não tem perigo. Eu estava com saudade — completou.

O quarto se encheu de pacientes de outros quartos, acompanhantes e profissionais do andar. Todos queriam conhecer a convidada tão especial. Leonice se ajoelhou ao lado do leito e tentou enquadrar, em uma selfie, ela, o pai e a vira-lata. Irmã de Rossvelt, Elenita Laguna Colares, 70 anos, pregou uma peça no bichinho:

— Vambora, Sol! Vamo!

Sol se encolheu, rastejou sobre as cobertas e se aninhou de modo a se sentir a salvo da falsa partida antecipada. Todos riram.

— Seu Rossvelt está até mais sorridente! Vai até conversar comigo hoje — comentou a terapeuta ocupacional Marjorie Morais.

Eram instantes de alívio em uma rotina esgotante. Os familiares foram deixados a sós para que pudessem aproveitar o momento em privacidade. Sol recebeu um lanchinho, Seu Rose adormeceu outra vez. Na televisão, passava o Encontro com Fátima Bernardes. Leonice preparou um chimarrão.

Coordenadora do Programa de Cuidados Paliativos do HCPALúcia Miranda Monteiro dos Santos destacou que a prioridade do setor é aliviar o desconforto dos pacientes internados. Rossvelt foi admitido sob dor indescritível, e os remédios prescritos apresentaram resultado. Sobre o projeto dos pets, a médica anestesiologista afirmou que muitos animais são considerados membros da família, e a impossibilidade de uma despedida, para quem não tem perspectivas de recuperação, é muito triste. Há casos em que momentos felizes podem inclusive melhorar momentaneamente o quadro do doente, dando-lhe ânimo – o que foi atestado com Rossvelt. A visita, portanto, é uma intervenção terapêutica.

— O caso dele é muito grave. A perspectiva é de um período curto de vida, mas para ele os dias não são mais como são para nós. Uma visita como essa vale por um mês. O tempo dele é diferente. Não importa o que ele tem de vida, importa a qualidade de vida que a gente pode oferecer para ele, esse é o nosso objetivo aqui. O tempo já não importa mais — explicou Lúcia.

Perguntei a Leonice se Sol não estranhou a profunda mutação física de Rossvelt — fotos que a filha armazenava no celular eram prova de que o pai parecia outro um mês antes.

— Acho que ela olha para ele e só vê amor. Ela sabe que ele está doente e fica cuidando.

Leonice precisava se dirigir ao trabalho e aproveitou para levar a mascote junto.

— Paizinho, já vou indo, tá? Sol, nós vamos ter que ir embora, neguinha. A gente pode voltar amanhã, depois… Dá tchau, véia.

Rossvelt acarinhou repetidas vezes o focinho da cadela e ergueu o braço para acenar à dupla que partia. Em uma das raras manifestações durante a passagem de GaúchaZH pelo NCP, o paciente falou ter gostado “bastante” da experiência. Leonice suspirou ao deixar a UAA:

— No momento, estou tranquila. Penso que ele não merecia isso. Já passou tanto trabalho na vida…

Rossvelt e Sol não voltaram a se encontrar. O paciente faleceu três dias depois, às 9h50min de sábado (20), na presença da filha. Deixou um sonho inconcluso: a construção de uma casa no Balneário Mostardense, que ele mesmo estava erguendo. Faltavam as divisórias dos cômodos, as instalações hidráulica e elétrica e uns retoques no banheiro. Seu Rose foi sepultado na tarde do domingo de Páscoa (21), em Mostardas.

A partir de agora, a cachorrinha Sol passará a viver em definitivo na casa de Leonice.

Fonte: Gauchazh

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