Perdemos o papa Francisco, o Bergoglio, o argentino. E agora? Como ficamos? Órfãos de representatividade? De onde virão os bons exemplos? Das igrejas que brotam aos borbotões? Dos políticos e suas guerras? Penso que o modelo de humanismo que ele representava será difícil de ser preenchido…
Antes que me esqueça, quem fala aqui é um ateu de carteirinha. Nunca fui fã da igreja católica e seu currículo histórico, mas aprendi a simpatizar com a figura carismática e, muitas vezes, divertida do Bergoglio.
Perguntaram-me recentemente por que sou ateu e precisei de um tempo e algum argumento para explicar. Fui criado dentro de uma igreja, no caso, a metodista. Li o velho e o novo testamento, em momentos distintos, fiquei impressionado com os textos, ainda adolescente. Fiz muitos questionamentos, poucas respostas obtive.
Também li muitos outros livros, Isaac Asimov, assinei a revista Superinteressante desde o seu lançamento e assistia a Cosmos, com Carl Sagan. Como Camilo em A cartomante, de Machado de Assis, “envolvi as crendices e a religião na mesma dúvida e depois em uma só negação total.” Cá fiquei eu, sem religiosidade alguma…
Leste o conto? Não? Largue esta croniqueta e leia-o já! Já leu, ótimo, podemos continuar nossa conversa sobre Francisco. Aliás, pergunto aos entendidos: porque nunca antes nenhum papa usou o nome de São Francisco, fundador da ordem mendicante da igreja católica, os franciscanos. Será que é porque pregavam que os missionários da igreja deveriam viver como Jesus, sem acumular riquezas, espalhando a bondade acima de tudo?
Não foram poucos os papas que praticaram o contrário disso. Alexandre VI, o papa Bórgia, além de uma penca de amantes e filhos promoveu guerras por toda a Itália. O papa Júlio II e Leão X venderam indulgências com vontade para financiar a construção da catedral de São Pedro, extremamente dispendiosa, além de desviar algumas riquezas para cofres familiares…
E o Francisco contemporâneo? Condenou os casos de pedofilia da igreja, pediu o fim da guerra da Ucrânia e do massacre de palestinos na faixa de Gaza, além de condenar o ataque do Hamas a Israel. Não fosse pouco, autorizou a bênção para casais do mesmo sexo, algo revolucionário para a igreja, mesmo no século XXI, além de reformar o banco do Vaticano, antro de corrupção há séculos.
E tudo isso com humor. Era torcedor fervoroso de futebol, como um ser humano mortal. Era defensor voraz da leitura e boa literatura, fã de Dostoiewski e Borges. Ao ser abordado por um padre brasileiro que pede oração para nosso povo, responde: “Vocês não tem salvação, é muita cachaça e pouca oração…” Ele riu, como um bom argentino ao provocar seus vizinhos tupiniquins.
A igreja tem seus defeitos, e são muitos. Não há como ser diferente, uma empresa criada por homens em nome de uma entidade divina não tem como dar certo. Nenhuma delas. Apesar da hegemonia católica, há algumas que não só pedem teu cartão de crédito com senha, criam bancos para administrar todo seu dinheiro, não só o dízimo.
E aqui entram as conquistas de Francisco. Ele não só adotou um nome, ele assumiu a ideologia do seu modelo. Contudo, e mais importante, nunca deixou de ser o Bergoglio, um ser humano de carne e osso, que trabalha para uma empresa gigantesca e bilionária, mas sabe representar seus clientes, a humanidade.
Como fazer Agindo com humanidade, simples, assim. O que envolve simpatia, acolhimento e desprendimento não importando se quem está diante de ti são reis ou líderes de nações, freiras e frades, crianças ou idosos. O papel que exerceu foi além do esperado pelo padrão de uma igreja tradicional, foi de alguém que serviu de exemplo não só para católicos, podendo ser para árabes, hindus, chineses e, pasmem, ateus.
Eu estive em novembro de 2024 em Roma. Visitei o Vaticano algumas vezes, acho aquilo esplendoroso, apesar de saber que muito dele existe pela venda de lugares no céu para crentes em vida eterna. Desta vez, passeando por lá, soube que haveria uma missa no dia seguinte que seria presidida por Francisco.
Eu teria só mais três dias na cidade eterna, mesmo assim, fui atrás dos convites e assisti boa parte da missa dedicada ao dia mundial dos pobres. Nem sabia que tinha isso. Mas Francisco sabia e estava lá, sentadinho numa cadeira, sob a cúpula projetada por Michelangelo e diante do baldaquino de Bernini, uma das estruturas mais belas do Ocidente.
Ao sair, em sua cadeira de rodas, fez questão de passar perto da plateia, ansiosa por olhá-lo de perto, alguns até tocaram nele. Eu acompanhei de longe. Sai dali embevecido por estar mais uma vez num dos lugares mais impressionantes do mundo, mas também, marcado pelas palavras de empatia de Francisco, sentimento tão raro nos dias atuais…
Quem sabe, após o Bergoglio descansar de seu árduo trabalho de pregar a paz e a tolerância, mesmo eu sendo um realista contumaz, tenha renovado minha esperança no ser humano, ao menos, em alguns poucos exemplares…
Encerro aqui com algumas de suas sábias palavras: “Devemos ver os ateus como pessoas boas, caso eles sejam boas pessoas…”