Artigo escrito pelo ouvidor do TCE-RS, Cezar Miola – Conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul:
Desde a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil avançou, no plano institucional, não apenas com o estabelecimento de direitos e garantias fundamentais, mas na conformação de um projeto de Nação balizado pelos marcos precisamente delineados no mesmo Estatuto. Esse projeto nasce de um conceito de democracia que não se exaure, como por vezes transita no senso comum, com a ideia de “governo da maioria”. Trata-se, pois, de reconhecer que a democracia só persevera diante do reconhecimento de que há determinados valores e direitos assegurados independentemente de qual seja a maioria.
Em nossa Lei Maior, esse princípio está consagrado nas “cláusulas pétreas” (art. 60, § 4º). Nomeadamente, a impossibilidade de se propor mudança tendente a abolir: a) a forma federativa de Estado, b) o voto direto, secreto, universal e periódico, c) a separação dos Poderes e d) os direitos e garantias individuais.
E num Estado de Direito Democrático, o que nunca se permitirá é que se eliminem ou comprometam os mecanismos de freios e contrapesos e os direitos fundamentais. Quanto a estes últimos, não são poucos os agravos que vêm sofrendo, junto com o aumento das desigualdades em muitas searas. Já o seu pleno exercício passa por políticas públicas que, por sua vez, precisam estar contempladas nos orçamentos, cuja execução é objeto central na atuação dos Tribunais de Contas (TCs). Assim, pode-se também reconhecer um liame indissociável entre a concretização dos objetivos fundamentais da República – cuja essência é “promover o bem de todos” (art. 3º da CF) – e a função controladora, missão constitucional reservada precipuamente ao Poder Legislativo e aos TCs.
Esse pressuposto auxilia na compreensão do trabalho dos órgãos de fiscalização. Com efeito, compete ao sistema de controle externo nas democracias contemporâneas a fiscalização da gestão pública, não apenas em seus aspectos contábil, financeiro, orçamentário e patrimonial, mas, também, na dimensão operacional, o que diz respeito, entre outros princípios, à eficiência e à efetividade do gasto público ou, se assim se preferir, à qualidade dos resultados alcançados. No caso da educação, numa ilustração singela, verificando se todas as crianças estão na escola, na idade certa, garantida a permanência e a qualidade da aprendizagem (incluídos o transporte, a alimentação, o material didático e o cuidado com a saúde), em instalações acolhedoras, com profissionais qualificados e dignamente remunerados.
A legitimidade dos eleitos lhes confere a possibilidade de inovar e de redefinir prioridades, mas não o direito de desperdiçar o recurso público em programas ineficientes e/ou contraproducentes. Mais do que isso, as escolhas do gestor não podem desconsiderar aquelas já previamente definidas pela Lei Fundamental; como, entre outras, a prioridade absoluta à criança e ao adolescente (art. 277). Assim, resta evidente que shows artísticos e festejos não podem drenar os recursos que faltam para a criação ou manutenção de vagas em creches, por exemplo.
Os Tribunais de Contas estão atentos ao desafio de serem, efetivamente, órgãos indutores da boa gestão e da melhor governança e “impeditivos do desgoverno e da desadministração”, como tão propriamente assinalou o ministro Carlos Ayres Britto no texto seminal “O Regime Constitucional dos Tribunais de Contas”. Cabe-lhes, então, como órgãos independentes, a fiscalização e a orientação da gestão pública para além dos aspectos meramente formais. Junto com a busca de soluções dialógicas e consensuais (balizadas, evidentemente, pelo ordenamento jurídico), esse norte tem marcado o movimento do sistema de controle externo, sempre em favor de políticas públicas efetivas, delineadas a partir de evidências científicas e em diálogo com a sociedade civil.