Por Charlene de Ávila e Néri Perin
O sistema de patentes, em particular, foi concebido em sua gênese essencialmente para proteger as invenções nas áreas mecânicas, sendo as criações na seara vegetal, excluídas desta proteção. Por outro lado, coube ao agricultor através de práticas seculares não só reservar os grãos ou sementes, mas também selecioná-las e melhorá-las, nomeadamente através do intercâmbio com outros agricultores e outras comunidades agrícolas.
Desde o estabelecimento da Organização Mundial do Comércio, e quase sem exceção, todos os países do mundo aprovaram leis dando às indústrias sementeiras a propriedade sobre formas de vida, seja por meio de patentes ou dos chamados direitos dos criadores de plantas ou leis de proteção de variedades vegetais, consequentemente privatizando microrganismos, genes, células, plantas, sementes e animais.
As leis de sementes atuais promovidas e amparadas pela indústria sementeira são cada vez mais agressivas, seja por pressão política e/ou pressão econômica – onde todas as formas “suaves” de direitos de propriedade sobre sementes foram endurecidas e continuam a se tornar mais restritivas em um ritmo mais rápido.
Essas leis e os regulamentos que concedem direitos de propriedade sobre “sementes” foram reforçados com a pecha de garantir supostamente a qualidade das sementes, a transparência de mercado, a prevenção de falsificações, e outros ‘blábláblás’. Por meio dessas regulamentações, torna-se obrigatório, por exemplo, que os agricultores comprem ou usem apenas sementes comerciais adaptadas para a agricultura industrial, constituindo crime, por exemplo, doar ou trocar sementes com o filho, um amigo ou um vizinho.
Ao fortalecer a privatização, essas leis têm desconsiderado princípios básicos de justiça e liberdade e violando diretamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde a regra é: “qualquer pessoa acusada de não respeitar os direitos de propriedade sobre sementes é considerada culpada, violando assim o princípio de que as pessoas são inocentes até que se prove o contrário”. Em alguns casos, elas estão legalizando buscas e apreensões de sementes com base em mera suspeita (mesmo sem um mandado) e permitindo que agências privadas conduzam tais verificações. Trocando em miúdos, os agricultores são alvos e estão sob vigilância; e alguns enfrentam acusações criminais e penas de prisão simplesmente por usarem suas próprias sementes.
O mais grave é que essas leis estão sendo elaboradas em linguagem vaga, incompreensível e contraditória, deixando muito espaço para interpretação. Na maioria dos casos, as leis estão sendo movidas por câmaras legislativas em segredo ou por meio de acordos internacionais que não podem ser debatidos nacional ou localmente.
Os direitos dos agricultores são direitos inerentes e inalienáveis, e isso precisa ser reconhecido nacional e internacionalmente. Mas quando traduzidos em estruturas legais, eles correm o risco de serem diluídos, deformados ou degradados. Os direitos dos agricultores e da comunidade não podem ser reduzidos a “isenções” ou “privilégios”, não podem depender de uma permissão legal especial e não têm lugar em leis de propriedade intelectual ou acordos comerciais – as leis de sementes não garantem sua qualidade.
Talvez a ferramenta mais importante no seu arsenal seja a UPOV, um regime jurídico de direitos de monopólio sobre variedades de plantas, administrado por um órgão intergovernamental com sede em Genebra, a União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas. Embora a OMC nunca tenha estipulado que os seus países membros tivessem de aderir à UPOV, o regime e as suas regras foram posteriormente impostos pelos países industrializados aos países do Sul através de acordos comerciais negociados fora da OMC.
À medida que a UPOV se expande, o mercado global de sementes foi dominado por um cartel de empresas agroquímicas. E atualmente, quatro destas empresas – Bayer (19%), Corteva (18%), Syngenta (8%) e BASF (4%) – controlam em conjunto metade (49%) de um mercado de sementes que representa US$ 47 bilhões. Eles também controlam 75% do mercado global de agroquímicos.
O resultado lógico deste poder concentrado nas mãos das multinacionais e que conta com o apoio da lei é um aumento exponencial dos lucros destas empresas. Com o seu poder monopolista e a criminalização das alternativas, os gigantes agroquímicos estão livres para aumentar os seus preços e exercer pressão sobre os agricultores e as explorações agrícolas.
Oxalá nos ajude!
Sobre os autores
Charlene de Ávila: Advogada. Mestre em Direito. Consultora Jurídica em propriedade intelectual na agricultura do Escritório Néri Perin Advogados Associados
Néri Perin: Advogado Agrarista especialista em Direito Tributário e em Direito Processual Civil pela UFP. Diretor Administrativo do Escritório Néri Perin Advogados Associados.