Buenas!
Como cronista que se preza, me alimento do cotidiano. Não é frase minha, Sabino e Rubem Braga, além do pai de todos, Machado de Assis, devem ter formulado alguma frase nesta linha. Mas como nossos leitores contemporâneos não leem mais autores deste quilate – uma lástima, para os leitores, principalmente, pois os grandes já se foram –, poderia replicar aqui que passaria como se de minha lavra fosse.
E o Brasil sempre foi uma fonte inesgotável de factóides que dão munição para cronistas e debates em mesas de bar, além, é claro, das mais ferozes contendas virtuais. As pessoas brigam, discutem, ficam de mal, tudo via rede social. E, cada vez mais, sem pudores, cada um abraçando a sua causa como sagrada e escolhida pelos deuses do Olimpo. E, se tu abraça a causa contrária, irá receber a ira divina em forma de áudios e memes intermináveis e torna-se meu inimigo para todo o sempre, amém!
Olha a questão do ataque terrorista do Hamas a Israel e a reação hebraica. Aqui no Brasil virou um debate esquerda versus direita. Como podem reduzir a níveis tão rasos uma disputa territorial sangrenta que começou antes de Cristo pisar naquelas areias e ganhou corpo com a colonização promovida por britânicos no final da I Guerra Mundial e se agravou com a criação dos estados da Palestina e de Israel? Não sei como fazem, mas o brasileiro é criativo e megalomaníaco, tem a explicação para tudo.
Os mesmos debatedores da causa acima, fizeram da eleição argentina outra disputa como se deles fossem a vitória ou a derrota. Os vizinhos hermanos vivem em crise há décadas, agravada pós pandemia. Eles tinham de escolher serem fritos na frigideira ou queimados direto no fogo. E nós, brasileiros donos da verdade eleitoral, pois já vivemos dilema similar, abraçamos um dos lados, fervorosamente, com comemorações e provocações, nas redes, onde mais?
Com que autoridade nos debatemos como doutos em causas que pouco ou nada vivenciamos, no máximo vemos na tevê? Já é complicado lidar com as eleições brazucas, em que brigamos, discutimos, criamos inimizades figadais em prol de um ou outro político, que depois vai ficar lá, perdendo ou ganhando, se locupletando com seus benefícios. E nós? Os mais fervorosos, com um úlcera, os menos, sobrevivendo a eles, os políticos…
E, para completar, ouvi disparates que discutiam a necessidade de um dia da consciência negra no Brasil. Pessoas questionando a necessidade de um dia especial para marcar a situação que os negros enfrentam no Brasil desde que as primeiras caravelas aqui os jogaram até os dias de hoje.
Li uma frase boa nas redes que diz que “se houvesse um dia de consciência branca, não teríamos mais de 300 anos de escravidão, muito menos o racismo estrutural dominando as entranhas de uma nação com uma população majoritariamente negra, mas que tem espaços e oportunidades extremamente restritas, para dizer o mínimo.
Para entender a justificativa para a data, saibam que ela foi criada para relembrar os momentos de luta e resistência promovidas sob liderança de Zumbi dos Palmares, morto em 1865. Ele foi um dos comandantes do Quilombo dos Palmares, um dos maiores aglomerados de negros que fugiram da escravidão.
Foram dizimados, como toda revolta contra o governo, o império tolerava fugas dos latifúndios muito menos rebeldes, mesmo que nenhuma outra nação do mundo promovesse a escravidão na segunda mentade do século XX, somente o Brasil.
Uma informação interessante, para nós, gaúchos, é que a data foi criada pelo grupo Palmares, formado por universitários negros, em Porto Alegre, de onde vos falo, em 1971. Somente em 2011 ele foi instituído em todo o país, por força de lei.
Desde então, a data é utilizada para ampliar o debate sobre o racismo, discriminação e inclusão. Ou seja num mundo em que ainda há, e muito, discriminação e racismo, mesmo que velado e estrutural, um dia é pouco. E fala aqui alguém que conhece um pouco desta realidade.
Não, não sou negro. Sou branco, mas tenho um filho adotivo que é negro. Para completar, ele não é só negro, ele tem um problema de pele e de visão, além de ter nascido surdo. Sua língua nativa é a Libras. Ou seja, foram muitos os momentos em que observei os olhares discriminatórios contra ele, muitos.
Felizmente ele cresceu lidando bem com isso, apesar de tudo, apesar de saber que, quando vai ao shopping, com seus amigos surdos e negros, eles são observados de modo diferente, para dizer o mínimo, pelos membros da sociedade, tanto pelas senhoras com seus pets – continuo não gostando desta palavra –, quanto pelos seguranças, mesmo os negros.
Como disse, o racismo está aí, circulando, perene, assim como a tensão entre a Palestina e Israel, que só irá acabar no fim dos tempos. Do mesmo modo é a crise econômica Argentina, que existe desde antes de eu nascer, e deverá permanecer firme e forte após o meu passamento…
Para concluir, penso que um dia da consciência negra precisa existir porque não temos outros 344 dias de consciência coletiva, consciência de que todos somos iguais, não importa a tonalidade de tua pele, e que faltam oceanos de oportunidades para que possamos afirmar que há neste país, e no mundo, igualdade racial e social…