Ué, o que houve Abelardo, te acordei Jorge, não, não me acordou chefia, estava vendo tevê, mas que cara é essa, que houve, nunca vens aqui, tá tudo bem contigo Jorge, tudo bem, só ando meio ocupado, Abelardo, coisas para fazer, mas me conta, o que houve para vir me visitar, estou nervoso, precisava conversar e só confio em ti, sei que vais me entender, faz tempo que trabalhamos juntos e eu não sei mais o que fazer, certo, desembucha, ando paranoico, dei pra seguir a Dalva, enlouqueceste, logo a Dalvinha, a paixão da tua vida, o que é isso, mas, me diz, ela fez alguma coisa que levantasse suspeitas, mais ou menos, não é nada concreto, mas veja bem, o celular está sempre desligado quando está em casa, no serviço, me atende muito rapidamente, não me dá atenção quando quero contar algo, está sempre cansada, mas na rua é só sorrisos, refestelada, ora meu, que tu queres, bonitona daquele jeito, simpática e bem apessoada, vai sempre te dar nervoso, quem mandou te envolver com a Dalvinha, todo mundo dizia, é mulher demais para ti, aquele par de pernas que dá pra fazer outra mulher com cada coxa, lembra que a gente brincava disso, não foi por falta de aviso, mas ela sempre me amou, éramos muito grudados, foi ela que se apaixonou por mim primeiro, elogiava minhas gravatas, o brilho dos meus sapatos, o meu penteado bem alinhado, a minha coleção de camisas de manga curta, até no estádio do Inter ela foi comigo, lembra, eu lembro, ela fazia um sucesso, todo mundo te chamando de sócio, a gente dava bastante risadas disso, claro, mas agora não quer nem saber de ir ao estádio, ela que sempre foi coloradaça, diz que aproveita minha ida ao estádio para ir ao cinema sozinha, diz que eu atrapalho sua concentração, acontece, é uma fase, camarada, é, mas acontece que ela tem chegado tarde em casa, às vezes diz que é serão no serviço, outras é a academia, noutras a Telma, sabe a mulher do Clóvis, aquele cara do setor de pessoal, segundo a Dalvinha andam brigando muito, precisa ajudar a amiga em crise, ajudar a passar essa fase, vão tomar um chopinho, quase todo dia, entre outras desculpas esfarrapadas, calma amigo, não deve ser desculpa, vai que é isso mesmo, ela sempre foi responsável no serviço e muito amiga das amigas, pode ser só uma fase, quer saber, acho até que a culpa é minha, aquela viagem ao Rio, uma semana, lembra, ela ficou puta da cara, capaz, Abelardo, era trabalho, ela tinha que entender, quem diz que mulher entende algo, Jorge, eu ligava toda noite antes de dormir, saí só um dia, na sexta-feira, no encerramento do evento, com toda a chefia e, quando voltei para o hotel, liguei para casa e, adivinha, ela não atendeu, mas o que ela disse, estava dormindo pesado, tomara um remédio para dor de cabeça, não ouvira o telefone, viu só, isso acontece, é, mas só de raiva, resolvi ficar mais uns dias no Rio, aproveitei para passear, tirar umas férias, não pensar nela, e por acaso conseguiu, nada, voltei ainda no domingo, ansioso por vê-la, e ela, estava trabalhando, que dedicação, diz que aproveitou o fim de semana para antecipar o balanço da empresa, aproveitou que eu não estava e se atirou no trabalho, viu só, mas domingo, convenhamos, ela nem me deu atenção, cheguei bronzeado, ela fingiu que nem notou, mas aposto que ficou brava, mas era o Rio de Janeiro, fevereiro e março, o que tu querias, se voltasse branco como uma noiva virgem, aí sim seria estranho, tá legal, tem razão, quando perguntei porque não me atendeu na véspera, ela me cobrou porquê fiquei com o telefone desligado uma tarde toda, não acreditou que estava no Maracanã, vendo o jogo do Inter, sabe que sou doente pelo colorado, lá o sinal não pega, nenhum estádio pega sinal de celular, ela disse que eu desliguei de propósito, capaz, veja só, não tá acreditando em mim, mas também, ultimamente o trabalho tem me estressado, só o Beira-Rio tem me dado alegrias, nem te encontro lá, Jorge, porquê? Pois é, Abelardo, estou com muitas coisas para resolver, e eu, imagine, a Dalva nem me nota, eu falando, ela lixando as unhas, com seu ahã característico, eu sem ânimo para chegar perto dela, mas isso continua até agora, piorou, nem o ahã tenho mais, nem parece me ouvir, parece que arranjou outro, que é isso, Abelardo, é só uma fase, não fica colocando coisas na cabeça, essa fase vai passar, verás, e aí tu vai ver que pensou um monte de besteiras, falando nisso, me diz, ela está em casa agora, não, por isso aproveitei para vir aqui, disse que ia visitar a mãe adoentada, viu só, que mulher especial preocupada com a mãe, e tu aqui, desconfiando de uma mulher dessas, é, besteira minha, a Dalva deve estar numa fase de aproveitar o trabalho, apoiar as amigas mal casadas, nem todas podem ser casadas com homens como tu, Abelardo, não exagera, Jorge, tô falando sério, tá, mas o que eu faço, por agora, vais para casa, se ela ligar e tu não estiveres, vai pensar o quê, foi pra gandaia, e a mãe dela vai concordar, aquela casca-grossa, aí sim a merda tá feita, não achas, faz o que eu te digo que eu conheço as mulheres, é Jorge, vou indo, tu tá certo, não preciso me estressar, amanhã a gente se fala, te ligo cedo, certo, mas deixa pra ligar depois das dez, preciso repor o sono, tudo bem, desculpe pelo incômodo, que é isso, os amigos são pra essas coisas, abraços e lembranças para a Dalvinha…
Canalha, o que tu estás pensando, me fazer de palhaço, isso não, nem pensar, alô, Dalvinha, Dalva, sou eu, onde tu andas, que estás fazendo, o quê, com quem tu estás, o quê, sua ordinária, o que estás pensando, ele tu podes enrolar, mas eu não, tu vais enganar outro, me disse que ia ficar em casa, que não podia me ver hoje, o Abelardo andava desconfiado, agora fico sabendo dessa história da tua mãe, não tem mas nem meio mas, eu disse que até aceitava continuar com o Abelardo, afinal ele não incomodava, não tinha ciúmes, tava sempre indo no estádio, parecia mais louco pelo futebol que por ti, vendo tudo que é jogo, a gente tinha facilidade para se ver nos horários dos jogos e ele te dando vida boa, agora outro não, ser outro de outro não, tá me ouvindo, alô, Dalva, alô, tá me ouvindo, está num lugar ruim, alô, o sinal não tá ruim não, alô, estou te ouvindo sim, alô, responde, sua vaca, não desliga, alô…
Conto publicado no livro “VERTEX ou o livro do conhecimento”