Buenas!,
O verso que intitula esta singela crônica faz parte não só do hino rio-grandense, pertence ao folclore e ao imaginário do povo que habita as paragens delimitadas pelo rio Uruguai, pelo país homônimo e pelo estado de Santa Catarina, além das águas frias do oceano Atlântico. Mas, pergunto com sincera curiosidade, será mesmo que foi no vinte de setembro que criamos a identidade e o sentimento de orgulho que nós, gaúchos, cantamos aos quatro ventos?
Lembram desta frase: “Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha, nos grandes dou de talho!” Pois deveriam, afinal, ela faz parte do imaginário gaúcho e provavelmente alguém já proferiu estas palavras com pompa e certo grau de arrogância em algum CTG. Foi exatamente esse o sentimento que o Capitão Rodrigo quis transmitir aos frequentadores do bolicho de Santa Fé, quando lá apeou de seu pingo – sim, estrangeiros, vou usar palavras desconhecidas por vocês que moram no Brasil e além. Quase deu briga, mas a simpatia do falastrão evitou o derramamento de sangue, ao menos, naquele momento.
Lembro de ficar acordado até tarde, no auge de meus doze anos, enfrentando não só o sono, mas a minha mãe insistindo em que eu tinha de dormir, para conseguir assistir a minissérie “O Tempo e o Vento”, transmitida tarde da noite pela Rede Globo. Impossível esquecer daquela série e do sorriso cheio de dentes do ator Tarcísio Meira, que perdemos recentemente para a famigerada covid-19. Uma grande perda para a arte, mas um legado eternizado por seus personagens.
Quando li as mais de duas mil páginas da obra-prima de Erico Verissimo, já nos bancos acadêmicos, enxergava nas falas do personagem o sorriso do ator, que soube encarnar como poucos uma criação literária. Tivemos no século XX um filme protagonizado pelo ator Thiago Lacerda. Contudo, por mais que ele tenha se esforçado, não conseguiria lustrar as botas embarradas do capitão eternizado por Tarcísio.
O capitão Rodrigo Cambará literário tomou conta do imaginário deste estado ao longo dos anos. Se lembrarmos que, antes do livro, ser gaúcho, gaudério e bonachão era considerado extremamente pejorativo, entenderíamos a importância do livro para a construção desta imagem. Quem leu a obra, não esquece jamais, mesmo que tenha feito a leitura somente do primeiro livro.
Para quem não sabe do que estou falando, vou resumir rapidamente o livro mais importante da história do Rio Grande do Sul. Uma tarefa complexa, pois, quando exercia a nobre função de professor, falava por horas sobre “O tempo e o vento”.
Que não é somente um livro, é uma trilogia, formada por O Continente, O Retrato e O Arquipélago. Como um todo, a obra abarca 200 anos de formação de um povo, os gaúchos, de 1745 até 1945. Claro que perpassa a história do Brasil, afinal, não somos egoístas. Aborda as guerras, mas, principalmente, as pessoas que formaram esta nação, como Getúlio Vargas, por entre tantos personagens ficcionais.
Dentre eles, Ana Terra e Bibiana, representando a força silenciosa das mulheres, e guerreiros com seus dramas, como o próprio capitão, seu filho Bolívar ou o bisneto, o Dr. Rodrigo, todos eternizados nas páginas e em minha memória. Agora, faço outro questionamento: a arte reproduziu o imaginário ou o contrário? E respondo que foram ambas as coisas.
O orgulho que o homem urbano sente quando coloca sua bota e bombacha não foi invenção do Verissimo pai, mas ele foi um dos principais responsáveis pelo resgate deste sentimento que foi quase que criado pelo movimento tradicionalista iniciado um pouco antes da publicação deste livro, na segunda metade da década de 1940. Vemos os modelos criados por Erico espelhados e espalhados pelas ruas do Rio Grande. Tenho um primo nascido logo após a minissérie que recebeu o nome da personagem, por exemplo.
Mas não esqueçamos das fontes primárias, elas são a origem de tudo, além de evitar a reprodução de notícias falsas ou paternidades vãs. Tanto o movimento quanto Erico, além de suas vivências, beberam em uma fonte esquecida, mas resgatada pela saudosa livraria do Globo, em Porto Alegre. Erico publicava e trabalhou nesta editora. Certamente ajudou a consolidar a obra de Simões Lopes Neto, a fonte literária de todos eles.
Os “Contos Gauchescos” foram publicados em 1912, em Pelotas, tendo repercussão pífia. No final dos anos 1940, foi publicado em uma edição crítica, tornando-se referência ao movimento gauchesco. Blau Nunes, o personagem narrador, era um gaudério dos pampas de 88 anos, “precavido, perspicaz, sóbrio e infatigável”, sem estudo, mas com muita vivência no campo e no modo de ser do homem simples e forjado com honra, como mostram histórias como “Trezentas onças”. Já leu? Pois deveria fazê-lo com urgência, garanto que não irá se arrepender.
Falando em provocação, deixo aqui um desafio que costumava fazer nos meus tempos de professor. Durante alguns anos, um dos volumes da trilogia de Erico foi leitura obrigatória para o vestibular de algumas universidades. Por ser um livro denso e extenso, ler por obrigação deveria ser considerado um crime inafiançável, porém, fazia parte do sistema. Como a maioria dos vestibulandos tinham pouco tempo para leituras deste quilate, optavam por resumos. Eu propunha o seguinte: leiam somente volume agora e se dediquem ao máximo para passar no vestibular.
Então, somente então, aprovados e com a tranquilidade de quem venceu o desafio supremo para sua época – mal sabiam eles que a competição ficaria mais acirrada a cada novo ano -, como pagamento por conquista da meta mais importante de suas vidas juvenis, devorar os três livros e suas milhares de páginas, degustando suas páginas com a parcimônia dos vitoriosos e com o orgulho com que os gaúchos são reconhecidos desde o vinte de setembro. Não esqueçam, quando ler, ostentar um sorriso digno do Tarcisão, digo, do eterno Capitão Rodrigo…