Há uma ano, a secretária Especial da Executiva Nacional do PSB, Mari Trindade Machado, enfrentava o julgamento público de um pedido de impeachment contra o seu mandato de prefeita de Sant’Ana do Livramento, no Rio Grande do Sul, município na fronteira do Brasil com o Uruguai.

Passado esse período, Mari, como é carinhosamente chamada pela cúpula socialista, analisa o evento que culminou na derrota da sua reeleição, fala sobre preconceito contra a mulher na política no país e compartilha aprendizados sobre a importância dessa experiência para o campo progressista.

A socialista falou com exclusividade para o site o Socialismo Criativo. Entre os fatores que levaram ao processo de impedimento e à derrota nas urnas, Mari aponta que a participação política das mulheres está histórica e profundamente marcada pela violência de gênero. Isso significa que, para além das barreiras para se eleger, quando as mulheres chegam ao poder elas ainda enfrentam muitas dificuldades para manter os cargos conquistados – simplesmente por serem mulheres.

No caso da secretária, pouco importava a sua trajetória política, cuja experiência passava pela chefia de gabinete do Ministério de Ciência e Tecnologia, na gestão do então ministro Eduardo Campos. Mari também foi secretária adjunta da Secretaria Estadual do Conselho de Desenvolvimento Social e Econômico do Rio Grande do Sul, subsecretária de Relações do Trabalho e Terceiro Setor do Distrito Federal, integrou o Conselho Nacional de Direitos da Mulher, foi a primeira secretária Nacional de Mulheres do PSB, por três gestões, sendo diversas vezes candidata a cargos eletivos. Nada disso importou quando o então prefeito cassado articulou um golpe contra a sua sucessora, até então, a sua vice-prefeita.

Confira a entrevista ao Socialismo Criativo

Socialismo Criativo – Há uma ano, a senhora testemunhou o próprio julgamento político em Sant’Ana do Livramento. Como a senhora analisa aquela situação, passado esse período?

Mari Trindade – O impeachment que foi aprovado na Câmara de Vereadores em Livramento foi dentro de um contexto político. Ocorreu um rompimento político com o prefeito, do qual eu era vice, e haviam aprovado na Câmara um impeachment contra ele. Esse sim, com razões para ocorrer. Como forma de retaliação contra mim, os partidários do PDT, partido do governo municipal, copiaram o pedido feito contra ele na íntegra, somente mudando o nome dele pelo meu e pediram impeachment contra mim.

O então prefeito conseguiu os seis votos necessários para não sofrer o impedimento político, enquanto o meu foi rejeitado por unanimidade. A minha análise da situação, hoje, é de que os interesses partidários e pessoais ainda são colocados acima dos interesses da cidade. O ex-prefeito foi afastado pelo Ministério Público para investigação – pelo próprio MP e Polícia Federal – por desvios de recurso na Secretaria de Educação e na Santa Casa do município. Os órgãos ofereceram denúncia com riqueza de provas, para a Justiça do Rio Grande do Sul. Na oportunidade de seu afastamento, assumi a prefeitura, o que aprofundou a violência política de gênero praticada contra mim por parte da classe política da cidade.

Socialismo Criativo – O que ocorreu na Prefeitura que possa ser citado como exemplo de violência política de gênero? Houve participação de grupos políticos de esquerda.

Mari Trindade – A eleição foi em 2016, com grande parcela de responsabilidade do PSB, desde a coordenação de campanha, até o próprio apoio financeiro. Em 2017, no primeiro ano de governo, assumi diversas secretarias no governo, como forma de economizar recursos, já que a cidade se encontrava em grandes dificuldades, entre elas, as secretarias Geral de Governo, Planejamento, Meio Ambiente e Habitação.

Neste primeiro ano, iniciaram as tratativas do prefeito para terceirizar a contratação de professores, o que resultou em um conflito, uma vez que sou contrária à terceirização de serviços essências da prefeitura, como para a saúde, a educação e a assistência social. Iniciou-se o processo de afastamento político, que resultou na minha exoneração de todas essas pastas e a tentativa de provocar a minha saída do prédio da prefeitura. Cortaram linhas telefônicas, minha assessoria, internet do meu gabinete, entre outras coisas.

Fui à Justiça para garantir o direito de ter um gabinete com estrutra mínima e uma assessoria, o que me foi garantido. De outra parte, o prefeito, através da Procuradoria Geral do Município também fez uma ação judicial para que eu não o substituísse em suas viagens e ausências. Com base na falta de definição de período de ausência para substituição, o pedido dele foi deferido. Então, iniciou-se um processo de isolamento, assédio moral, ataques na Câmara e difusão de fake news em redes sociais, inclusive com palavras de baixo calão, o que resultaram alguns processos por danos morais de minha parte.

A parte ou parcela de políticos a que me refiro são essencialmente os que ocupavam cargos no governo e que deviam, por isso, lealdade ao prefeito. Desse contexto fizeram parte partidos de todos os matizes políticos, incluindo personalidades de esquerda. Também foi protagonista dos ataques uma vereadora do partido do prefeito, que usou a tribuna da Câmara, grupos de WhatsApp e outros meios para tentar manchar, enxovalhar e rebaixar a minha imagem.

Socialismo Criativo – Como eram os ataques?

Mari Trindade – Traziam sempre o preconceito de gênero, a violência política. Claramente os ataques não seriam da mesma forma se fosse um homem que estivesse atrapalhando os interesses não republicanos de uma maioria de políticos não formada pela ideologia, mas sim pelo fisiologismo. Você não usa qualificações para homens como “putos ou galinhas”. A abordagem moral é usada apenas contra as mulheres na política. Sempre! Havia Preconceito de gênero e outros sentimentos mais danosos e rasteiros. Foi uma experiência decepcionante, uma vez que nós acreditamos na sororidade entre as mulheres. E que deixou marcas bem profundas. Eis aí a razão pela qual as mulheres têm dificuldade de disputar espaços de poder: terão que desalojar um homem, já que os espaços são todos ocupados por eles, e irão sofrer política de gênero.

Socialismo Criativo – Esse vocabulário era adotado publicamente no parlamento local?

Mari Trindade – Fui chamada de “puta” sim, por um vereador, mais de uma vez, em mensagens de whatsApp, que se tornaram públicas nas duas oportunidades. Mulheres do meu partido fizeram manifestação pública na câmara, houve divulgação de notas de apoio de todas as instâncias do partido.

Socialismo Criativo – Como esses ataques encontraram eco na sociedade?

Mari Trindade – Tomei a decisão de não responder aos ataques e dar um exemplo de boa política, falando de propostas. Tínhamos um plano de governo exequível e construído com a sociedade. Eu era a franca favorita para vencer a eleição. Mas, não soubemos medir o resultado dos ataques junto à população. Eles vieram pelas redes sociais e nos pequenos comícios em todos os bairros da cidade. Não me arrependo de ter tomado essa decisão, de não responder aos ataques. Mas, a cidade, acredito que sim, se arrepende de sua escolha.

Claramente fiz um bom governo quando assumi a prefeitura, em 27 de dezembro de 2019 até 27 de maio de 2020. Gosto da gestão e tive bons exemplos, através do meu convívio com Eduardo Campos, com quem trabalhei por 10 anos, integrando a sua coordenação de campanha presidencial inclusive. Tínhamos uma equipe de jovens e quadros técnicos, valorizando os servidores.

Enfrentamos o início da pandemia com muito diálogo com os profissionais da saúde, colhendo excelentes resultados, tanto na melhoria da estrutura hospitalar do município quanto da saúde. Iniciamos a obrigatoriedade do uso de máscaras e implementamos as medidas de distanciamento social. Nesse período, de 16 de março a 27 de maio, tivemos 10 casos de Covid em março, 5 em abril e 20, em maio. Contabilizamos apenas uma pessoa morta em razão da pandemia.

Nesse contexto, posso afirmar que precisamos ocupar os espaços de poder internamente dentro dos partidos e nas instituições. Mas, precisa ser paritário. Os homens não irão abrir mão de seus espaços gratuitamente e muito menos reconhecer nossa capacidade de administrar cidades, estados e países. Nossa presença é fundamental nos legislativos. A mulher tem uma forma diferente de ver a política, na nossa pauta estão as questões sociais, em primeiro lugar. A inclusão e geração de oportunidades iguais para todos e todas. Os homens não trazem essa pauta, aprendem conosco, quando aprendem.

Socialismo Criativo – E quais lições podemos tirar da sua experiência?

Mari Trindade – As lições são aprendidas com dureza, muito sofrimento, vontade de desistir. Mas, ao mesmo tempo, vem a consciência de que há muitas pessoas que precisam de nós, de políticas públicas efetivas, que mudem a vida das pessoas para melhor! Durante os oito primeiros anos que o PSB governou Livramento, coordenei a implantação de um Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, um Centro de Referência para mulheres vítimas de violência, um Centro de Planejamento Familiar, um Centro do Idoso, reduzimos a mortalidade infantil, bem como a materna.

Na oportunidade que me elegi, implantamos um Centro Especializado em Saúde da Mulher, com ambulatório para atendimento a depressão, uma casa abrigo para crianças, albergue para pessoas em situação de rua, entre outras políticas públicas. Esse olhar para as ditas minorias está com as mulheres! Por isso precisamos estar na política. E enfrentar as adversidades com coragem. Quero lembrar de um dos programas mais bonitos que fizemos, chamava-se Sonho de Mulher.

As mulheres escreviam cartas contando seus sonhos e nós buscávamos parceiros para realizá-los. O que mais me tocou? Uma senhora de 70 anos que sonhava em possuir um abajur. Nunca tinha tido. Sonhamos com tão pouco, e essa sociedade machista é incapaz de ver o valor que tem uma mulher. Na maioria dos casos, os sonhos inclusive não eram para elas, mas para os filhos, a casa… Isso nos motiva a seguir em frente. Porque fazer a política do bem é muito gratificante.

Socialismo Criativo – E quais seus conselhos para mulheres que desejam ingressar na vida política?

Mari Trindade – Nossa pauta é por mais mulheres no poder para que a vida das pessoas possa de fato melhorar. Como diz Michele Bachelet, quando uma mulher entra na política, muda a mulher. Quando muitas mulheres entram na política, muda a política. Cada uma das mulheres na política precisa se reconhecer como importante e insubstituível, qualificada, participar e opinar em reuniões partidárias, ocupar espaços de direção em todos os lugares, ser candidata e lutar pela credibilidade da sua candidatura no partido e na sociedade, ter sororidade e empoderar outras mulheres, sentir-se linda e levar amor para a política. Além disso assumir-se feminista e saber gerenciar recursos humanos para não responder por vários turnos de trabalho. Levar honestidade e verdade para a política!

Socialismo Criativo – Como a senhora se vê nesse momento, após a turbulência?

Mari Trindade – Estou bem. Olhando em perspectiva para os fatos e como eles ocorreram. Avaliando erros e acertos. Mas, muito feliz por ter podido contribuir para melhorar a vidas das pessoas da minha cidade, nas oportunidades que tive. Creio que partidos são um instrumento para chegar nos espaços de decisão e fazer boas gestões, bons mandatos legislativos. E cumpri com a minha parte, por lealdade à minha cidade.