Buenas,
Falar de viagens não é nada complicado para aqueles contaminados pelo vírus do “viajante”, como comentei dia desses, ainda mais se for pela cepa altamente contagiosa que costuma circular no verão, normalmente o período em que mais se tira férias. Com as restrições que impedem esse vírus de tomar conta (já que “aquele” outro vírus está dominando os pagos mundiais), deixamos de perambular mundo afora, vivendo como zumbis enclausurados em nossas casas.
Bem que tento não pensar tanto nesse assunto, mas as redes sociais com seu sistema de lembretes, avisa diariamente que, nessa época, em outros anos, eu estava perdido em algum lugar do mundo, bem feliz e pimpão. Hoje, nem com 1 milhão na conta eu poderia estar muito longe de casa. Talvez por perto, mas não longe, como prefiro.
Ao debater isso com um amigo que também foi contaminado com o vírus do “viajante”, não com o “famigerado”, lembrei-me de uma frase de Fernando Pessoa: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Pesquisando, soube que a frase não é originalmente dele: segundo o historiador Plutarco, foi proferida pelo general Pompeu, no séc. I a.C. Ele precisava fazer uma longa navegação para levar trigo até Roma. Foi preciso viajar, no sentido de “necessário”. Na frase romana, podemos dizer que viajar era garantia de alimento, de vida. Ou seja, não era uma metáfora; sem navegar e enfrentar as adversidades advindas dela, faltaria comida na capital do império.
Entretanto, ao tratarmos de Fernando Pessoa, um dos maiores poetas da língua portuguesa, é necessário lembrar que ele era um simbolista, resumidamente falando. O poeta português adorava símbolos e metáforas, buscando o que há além, o inatingível, muito fruto da influência de Platão em sua obra, desconsiderando seus heterônimos, nesse caso.
Quando ele usa a expressão “preciso”, ele opta pelo sentido de exato, certeiro, e não o de necessidade. Assim, ele supera a simples questão interpretativa, não por mero acaso, mas por pura precisão. Os portugueses, exímios navegadores, dominavam com precisão as navegações mares afora, como bem sabemos e o Brasil é consequência disso. Já o ato de viver, é uma tarefa completamente imprecisa, sem nenhuma exatidão ou certezas.
Navegar era o modo de viajar na antiguidade para regiões longínquas, além de ler, é claro. Essas duas coisas nos engrandecem. Foi lendo que aprendi essas referências literárias e tantas outras e tracei minhas rotas de viagens. Podemos, e muito, aprender com o simples viajar, mas também buscar o que há escondido não somente atrás de uma ruína histórica, mas também em palavras trabalhadas com maestria.
Quem souber fazer isso, aprende muito com o mundo. Por exemplo, LFV, o famoso Luis Fernando Verissimo, teve muitas oportunidades proporcionadas pelo seu pai, o não menos conhecido Erico. Verissimo, o pai, tornou-se professor em Berkeley, na Califórnia, quando o filho tinha seis anos. O menino foi alfabetizado primeiro em inglês, voltando ao Brasil dois anos depois, já fluente na língua bretã.
Quase uma década adiante, Erico assume a gestão do departamento de assuntos culturais da OEA, a Organização dos Estados Americanos, com sede em Washington. LFV faz o ensino médio por lá. Nas folgas, como um reles mortal, ia até Nova Iorque, assistir a shows de jazz, baratíssimos, como as passagens de trem naqueles tempos. Na volta, tentou aprender trompete, como Louis Armstrong. Porém, na escola só tinha sax. Mesmo assim, aprendeu tão bem que, como já comentei por aqui, até fez shows, além de gravar CDs em terras brazucas.
E não parou por aí. Contaminado pelo vírus do “viajante’’ desde cedo, quando adulto, morou em Paris, Roma, Nova Iorque, inclusive em Porto Alegre, onde mora até hoje, produzindo uma série de livros com crônicas maravilhosas sobre essas cidades (que contam com belíssimas ilustrações de Joaquim da Fonseca). As obras foram tão conceituadas, que o consulado japonês e o espanhol convidaram o escritor e o desenhista, além das respectivas famílias, a passar um mês em Tóquio e depois em Madrid. O objetivo era que eles tivessem inspiração e produzissem novas obras, agora sobre essas cidades. E o fizeram, no total, foram sete livros sobre suas viagens.
(Agora uma pausa para um relato pessoal. “Traçando o Japão”, lançado em 1995, eu recebi como presente de suas mãos, autografado, quando visitei sua casa para, digamos, trocar umas ideias, jogar conversa fora, bater um papo. Está lá na minha estante, ao lado de minhas lembranças de viagens…)
Voltando para a temática dessa crônica, considero que podemos viajar e aprender com essas viagens, como fez o Verissimo. Contudo, nesse momento em que as viagens estão restritas, podemos aproveitar o momento para ampliar nossas viagens literárias, preparando o terreno para futuras viagens físicas. Podemos, inclusive, fazer como recomenda o escritor francês Xavier de Maistre, em seu livro “Viagens ao redor de meu quarto”: viajar sem sair do lugar, através dos livros e, claro, para o bem e para o mal, através da TV.
(Estou tentando concluir, mas está difícil, são muitas referências e citações, mas vou me esforçar). Podemos afirmar que navegar pelos mares para os romanos, era garantia de alimento e vida. Já para Pessoa, navegar era tão preciso, no sentido da exatidão, quanto era seu trabalho de escultor da língua portuguesa, que alimentou nossa alma.
E, para encerrar com uma referência literária de peso, segue uma última, dando o ponto final na costura de minha colcha de retalhos narrativos: “viver é muito perigoso…”, Afirmou Guimarães Rosa através do personagem Riobaldo, em “Grande Sertão: Veredas”, obra-prima da literatura ocidental. Sendo assim, vamos viver aprendendo, seja viajando pelo mundo todo ou ao redor de nós mesmos, seja navegando pelos mares literários…