Por: Alessandro Castro, Policial Rodoviário Federal e Mestre em Literatura
Buenas,
Machado de Assis era negro e foi o maior escritor brasileiro de todos os tempos, ponto final. Esse deveria ser o único sinal gráfico colocado após essa frase, pois não há necessidade de maior argumentação. Eis que, recentemente, surgiu um debate sobre essa mesma negritude. Vamos a ele.
Ano passado, a Universidade Zumbi dos Palmares, de São Paulo, publicou uma foto “colorida” do escritor, apresentando-o como um homem negro. Machado de Assis nasceu em 1839, mulato, gago, filho de pai negro e pintor de paredes, e morreu em 1908, quando as câmeras ainda não captava as cores. Logo, os registros que existem são todos em preto e branco.
Nas fotos antigas, ele aparece com um tom mais claro de pele. Segundo o estudo, seria uma tentativa de “branquear” o escritor, não um problema causado pela qualidade das centenárias imagens. Essa leitura corrobora interpretações de alguns críticos, que chegaram a acusá-lo de viver como os brancos, esquecendo sua origem. Muitas dessas críticas estão no livro recém lançado “Escritor por escritor: Machado de Assis segundo seus pares”. Um calhamaço de textos sobre o autor, propício para pesquisadores.
Agora perguntará um leitor mais atento: a cor do escritor teria capacidade de influenciar sua escrita? Sim e não, seriam as respostas mais adequadas. Tema bastante pertinente e polêmico hoje, imaginem há uma centena de anos. Por isso, segue uma informação pouco conhecida, mas relevante: sabiam que os livros no Brasil do século XIX eram escritos para uma pequena elite alfabetizada, publicados primeiramente em fascículos nos jornais, como as telenovelas ou as séries, as mesmas que hoje dominam nosso tempo e atenção?
Autodidata, aprendeu francês e inglês ainda jovem, frequentando as bibliotecas públicas. Aos poucos, entrou para o mundo dos jornais, escrevendo artigos, críticas teatrais, poesias, crônicas, contos e, posteriormente, a ambição de todo escritor: romances! E, para pagar as contas, trabalhou como funcionário público por 35 anos a fio, vejam vocês…
Agora faço um questionamento: o mundo que ele frequentava, dos jornais, livrarias e repartições públicas, dominado por homens brancos, principalmente no período da escravidão, que acabou só em 1888, quando ele já tinha 8 livros publicados, dentre eles “Memórias póstumas de Brás Cubas”, daria espaço para um homem negro, que brigasse pela causa negra em seus livros?
O escritor Lima Barreto, no início século XX, bem depois do fim da escravidão, tento seguir essa linha e o que conseguiu? Ser humilhado pela crítica e refugiar-se no alcoolismo, que ceifou sua vida cedo demais.
E agora, após essas informações, quero fazer a minha análise. Machado de Assis era um homem comedido no modo de levar sua vida, não na produção de seus textos, felizmente. Ele tinha uma vida simples, nunca foi para a Europa, que era o caminho da classe abastada, viveu somente em casas alugadas, deixando uma poupança módica de herança para uma sobrinha, já que não teve filhos, como seu personagem Brás Cubas.
Sem outra opção, escrevia para a elite leitora, que era branca, com quem convivia, de onde colhia suas temáticas e personagens. Nem por isso deixava de mostrar, com sua ironia sutil e mordaz, as incongruências e a incapacidade dessa mesma elite de melhorar o país e, por consequência, suas próprias e medíocres vidas, mesmo que abastadas financeiramente. AInda assim, com sutileza, adentrou a questão dos negros, mostrando que a cor não é determina o caráter.
Recomendo a leitura de um conto (poderia citar dezenas, mas fiquemos com esse): “Pai contra mãe”, publicado em 1905. Trata de um homem branco, Cândido Neves, que não gosta de empregos formais; vive de capturar negros escravos fugitivos. A história se passa antes de 1888.
Ele casa com uma mulher branca, pobre como ele, que vivia com uma tia. Ambas costuravam para dar conta das contas, já que os rendimentos de Cândido eram raros e esparsos. Tiveram um filho que não poderiam criar, teriam que entregar na “roda dos enjeitados”, para adoção. Eis que, uma negra fugida há muito procurada, Arminda, que valia um bom dinheiro, cruza seu caminho quando vai deixar seu filho na roda. Ela está grávida e implora para não ser entregue e ter seu filho livre.
Esse é um resumo rápido e rasteiro, vocês precisam ler a história para compreender o cerne da questão: no lugar do homem branco você entregaria a negra e pegaria o dinheiro e manteria seu filho ou deixaria a negra ter o seu filho em liberdade?
Será que o desfecho seria diferente se eles não tivessem cor, simplesmente fossem um pai e uma mãe lutando por seus filhos? Aliás, não direi qual foi o desfecho, mas tenho certeza que muitos já adivinharam. Façam o favor a vocês mesmo e leiam essa história, facilmente acessível na internet e tentem condenar Cândido ou Arminda…
Do mesmo modo que não tenho como julgar a decisão desse pai ou dessa mãe ao lutarem por seus filhos, não importando suas cores, não devo censurar um escritor que viveu em uma sociedade cruel e racista por não expor, discutir ou debater a sua própria cor. Aliás, tanto seus escritos quanto suas fotos que chegaram até nós, não têm cores e, por isso mesmo, nos dizem muito.
Poderia ficar a falar dele e sua obra por horas sem fim, mas, melhor que ler o cronista incolor que sou, é desfrutar do assunto desta crônica, lendo o universal Machado de Assis. Tenho certeza que irão descobrir um mundo que vai além das cores da capa de um livro ou da pele das pessoas…
Que tal?