A crise causada pela pandemia do coronavírus viu na ausência de respiradores para infectados seu maior desafio na luta para combater a violência da doença, que ataca principalmente os pulmões dos infectados.
Em diversas partes do mundo, grandes montadoras e equipes de Fórmula 1 pararam suas produções para desenvolver e construir mais respiradores. No Brasil, no entanto, a história vem mostrando que basta uma mente criativa e recursos simples para que este problema seja não só atenuado, mas também fornecer uma solução de forma acessível.
Técnico-mecânico com passagens por marcas como a Renault e por equipes da Stock Car, Arlindo Romero se viu na obrigação de usar todo seu conhecimento técnico para poder auxiliar de alguma forma – e foi assim que surgiu a ideia de criar um respirador utilizando componentes disponíveis no mercado de autopeças.
“Você pode até sair do automobilismo, mas o automobilismo jamais vai sair de você, foi exatamente o que descobri há duas semanas quando tomei conhecimento de dois fatos interessantes, o primeiro foi que algumas equipes de F1 estavam usando sua capacidade técnica para projetar e construir respiradores “baratos” para atender à falta destes equipamentos no mundo por conta do COVID 19, o segundo, este me tocou mais profundo, foi saber que na África existem somente três respiradores para cada cinco milhões de habitantes”, comenta.
“Quando fui me informar sobre os projetos da F1 me dei conta que eram bem interessantes e tinham o “pedigree” da F1, altíssima tecnologia, logo concluí que lá na África eles não teriam muito acesso a esta solução. Fora do automobilismo há mais de 10 anos, minha despedida como engenheiro do Thiago Marques foi na primeira corrida do milhão da Stock no Rio de Janeiro, fazia tempo que eu não sentia aquela sensação de felicidade de olhar o carro de um concorrente e pensar: ‘posso fazer melhor’”.
“Sentei no computador e fui procurar quem mais estava tentando fazer alguma coisa para tentar ajudar e em dez minutos ficou claro que a tendência estava em automatizar o ressuscitador manual conhecido, mundialmente, como Ambú (marca mais famosa), aquele usado nas operações de ressuscitação cardiopulmonar. Ele é uma espécie de balão de silicone com um reservatório de oxigênio. Gostei muito da proposta, afinal toda a parte clínica já estava calculada e validada, o desafio seria apenas achar a melhor forma de fazê-lo funcionar automaticamente”, continua.
“Nascia assim a premissa de partida do projeto: chegar ao mesmo resultado usando somente componentes simples e disponíveis no mercado de autopeças, motopeças e materiais de construção e que qualquer componente que precisasse ser fabricado pudesse ser feito à mão. Imaginei que desta forma ele seria realmente popular e viável em qualquer lugar do mundo, até nas savanas africanas.”
Para dar prosseguimento ao projeto, Romero mergulhou nos estudos e aprendeu tudo o que precisava sobre a biomecânica da respiração humana e os princípios de funcionamento dos respiradores tradicionais. E, após procurar especialistas para tirar dúvidas sobre os conceitos mais complicados, Arlindo entendeu como poderia montar seu respirador.
“Depois de alguns telefonemas para alguns amigos mais próximos eu já tinha conseguido tudo o que eu imaginava que fosse precisar. Dois dias de trabalho na garagem e foi possível testar todas as ideias que estavam na cabeça, “ia dar certo!”, mais dois dias e foi possível ver uma bexiga enchendo e esvaziando com a possibilidade de regular separadamente as velocidades de enchimento/inspiração e esvaziamento/expiração e o tanto que a bexiga seria inflada, volume de ar que seria forçado ao pulmão, estava pronto o primeiro respirador auxiliar realmente popular, agora só faltava mostrar para quem realmente diria se era bom ou se eu deveria voltar para a garagem, profissionais da saúde.”
Morador de Ubatuba, no litoral paulista, Romero contou com o auxílio de uma fábrica de móveis para tornar o aparelho esteticamente mais bonito e levar ao prefeito da cidade, Délcio Sato, que o recebeu juntamente com o comitê de emergência do vírus para avaliar o projeto.
“Quando entrei na sala de reuniões havia umas dez pessoas ainda discutindo o assunto nterior e aquela caixa “branco hospital” na minha mão chamou a atenção de todos. Após meia hora de apresentação, foram muitas explicações, demonstrações, perguntas e respostas para uma equipe focada em se preparar para um cenário difícil. Fomos então para a reunião no dia seguinte com a equipe da secretaria de saúde e do SAMU, ou seja, quem realmente poderia dizer se iria ou não funcionar e atender às necessidades do corpo clínico.”
“Na segunda reunião, com menos gente e mais especializados, fomos direto aos pontos que precisariam ser melhorados e até eliminados para podermos passar para o que seria realmente importante, testar em pacientes de verdade com problemas de verdade. Para isso nós seremos submetidos a uma nova vistoria minuciosa, desta vez feita por um juiz e uma promotora para termos certeza de que mesmo diante de um quadro de emergência de saúde poderemos utilizar um equipamento que ainda não foi homologado pela ANVISA. Criaram um grupo de trabalho e, sob a orientação deles, estou fazendo todas as modificações a ajustes necessários para congelar o projeto e iniciarmos a fase de produção. Decidiram também “batizar” o dispositivo que depois de muitas ideias e identificação da real função do dispositivo e uma analogia de que ele fornecerá três vezes mais ar aos doentes passou a ser chamado de 3AR.”
Neste momento, o futuro do projeto depende de decisões jurídicas e Romero alinhou uma cooperação com a secretária de educação de Ubatuba – que gostou muito do projeto naquela primeira reunião e ofereceu a possibilidade de os 3AR serem montados pelos alunos dos cursos técnicos em suas diferentes disciplinas, gerando uma oportunidade ímpar para proporcionar aos jovens a chance de praticarem a cidadania e a solidariedade com responsabilidade.
Paralelo a isso, Romero segue trabalhando na documentação do projeto para que assim que tivermos a autorização judicial, divulgar na internet com os detalhes necessários para que ele possa ser replicado ao redor do planeta e, finalmente, atingir o objetivo inicial proposto. “Espero que ele possa chegar a tempo de contribuir para diminuir as perdas humanas. Só o privilégio de se classificar e largar já terá sido o reconhecimento para toda uma vida”, completa.