A fila para a entrega de currículos estendeu-se por mais de três quarteirões
Com a chegada de uma das principais redes de supermercados do estado do Rio Grande do Sul, a cidade de Sant’Ana do Livramento, além de receber o empreendimento de braços abertos, também emitiu um pedido de socorro. Isso porque, na última segunda-feira, dia 2, teve início o processo de recrutamento para os cerca de 60 novos postos de trabalho que serão disponibilizados pela rede.
A coleta, prevista para iniciar às 10h da manhã, tinha tudo para ser mais uma etapa comum de seleção, se não fossem as mais de 500 pessoas que, juntas, compunham uma extensa fila que ocupou mais de três quarteirões da avenida João Pessoa. No período da tarde, outra multidão se formou frente às salas comerciais localizadas no térreo do edifício Panorama que, dentro de poucos meses, abrigarão as instalações da unidade santanense da rede Vivo.
Um a um, todos os candidatos foram recebidos e encaminhados para a próxima etapa da seleção. Para os primeiros colocados da fila, essa odisseia atrás de uma oportunidade no mercado de trabalho começou alguns dias antes das portas se abrirem. Como no caso de Lara de Castro, uma jovem de 19 anos que chegou ao local às 16h de sábado, com quase dois dias de antecedência.
A candidata conta que a decisão de deixar o conforto do lar e a companhia do marido e da filha de quatro anos foi difícil, mas necessária. “Tô precisando muito (sic), muito desse emprego, por isso que eu vim sábado”. Perguntada sobre como foi a espera, Lara relata que passou momentos difíceis na fila. “Passamos sufoco. Nem banheiro a gente tinha (sic). Usamos o do posto e depois tivemos que ver outro lugar porque já não estavam mais deixando nós usar (sic). Água quente a gente não conseguia com ninguém. Não fomos pra casa dormir, estamos aqui desde sábado mesmo”.
Como se a espera já não fosse cruel o suficiente, Lara e mais um grupo de candidatos que a acompanhavam ainda foram hostilizados. “Começou a chegar mais gente porque nos viram aqui. Aí começaram a falar que era bobagem ficar aqui porque iam começar só segunda. […] Passava carro, xingavam a gente, imagina, éramos só mulheres”, comenta.
Reforçando a sensação de insegurança, o grupo ainda revela que sofreram ataques. “Atiravam pedras lá de cima do morro pra gente sair, pra nos oprimir. Gritavam cada coisa, que não íamos conseguir nada, que a gente tava fazendo fiasco (sic). A gente não tá aqui porque quer e sim porque a gente precisa (sic), não é uma brincadeira’’, pontua.
Em determinado momento a ideia de deixar tudo para trás chegou a ser cogitada, mas o apoio do grupo foi fundamental. “Deu vontade de ir embora, sinceramente. Só não fui porque eu preciso mesmo e eu sei que é uma batalha pra conseguir as coisas. Todo esforço tem uma recompensa. A gente não deixou ninguém desistir, revezamos as cadeiras, sentamos um pouco no chão, deitamos, resistimos’’, revelou.
Ao final do dia, o setor de comunicação da rede Vivo comunicou que mil e quinhentos currículos foram entregues. A notícia de que pessoas estavam na fila há dois dias pegou de surpresa até mesmo os responsáveis pela coleta dos currículos. “Sinceramente, eu achei que não ia ter muita gente, mas agora que viemos por baixo, vimos que a fila está dando duas voltas. Nos surpreendeu positivamente’’, disse Lauren Machado, psicóloga e analista de gestão de pessoas da rede Vivo.
Ainda de acordo com a analista, após a entrega dos currículos, os candidatos receberam uma ficha com dia e horário para as próximas etapas do processo, que incluem a apresentação da empresa e dinâmicas de grupo, posteriormente, a rede Vivo vai fazer a análise dos currículos e encaminhar os escolhidos para as vagas pretendidas.
A partir desse momento, as entrevistas individuais devem ser iniciadas, com a previsão de término do processo estimada para as próximas duas ou três semanas, ainda segundo os responsáveis pelo recrutamento.
O início dos treinamentos será o próximo passo após a seleção, com a possibilidade de alguns candidatos realizarem essa capacitação em outras cidades, mas isso vai depender da vaga a ser preenchida. A filial de Livramento ainda não tem uma data certa para abrir as suas portas, mas as projeções apontam para o mês de abril.
PEDIDO DE SOCORRO
No primeiro parágrafo desta reportagem falou-se em um pedido de socorro, que nada tem a ver com o novo empreendimento, mas que, através da gigantesca procura por uma oportunidade de trabalho, apenas ficou mais evidente a triste situação que atinge milhares de homens e mulheres: o desemprego.
De acordo com os dados fornecidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), realizado pela fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego no Rio Grande do Sul aumentou de 8,2% para 8,8% no último trimestre de 2019.
A fila dos que procuram emprego é puxada pela parcela da população com idade entre 25 e 39 anos, que representa 33,4% deste montante. Na sequência, estão os que têm entre 18 e 24 anos, que já ocupam o segundo lugar com 29% do total de desempregados.
Se dividirmos por gênero, quem mais sofre com a falta de trabalho são as mulheres, que surgem na proporção marcando 57% dos desempregados. Já observando os dados de quem está empregado, a desvantagem também é delas. Isso porque nos dados de rendimento mensal, as mulheres ganham cerca de 30% menos que os homens.
INFORMALIDADE
Além disso, ou, por consequência, o número de pessoas que optam por trabalhar na informalidade aumentou. Esse aumento também foi constatado pela PNAD Contínua, que apontou que 32,2% dos gaúchos trabalha sem carteira assinada, por conta própria sem CNPJ ou ainda presta serviços domésticos.
Entretanto, o fato de essas pessoas não estarem completamente sem ocupação não deve ser comemorado, pois, na maioria das vezes, esses serviços obrigam que o trabalhador submeta-se a condições precárias de trabalho.
Como no caso de Cleber, nome fictício adotado por um motorista de aplicativo que preferiu não se identificar. “Trabalho com isso (aplicativo de transportes) há quase um ano e meio. Entrei pra não ficar parado, estava desempregado e precisava de dinheiro porque tenho família, mas não é fácil. Pra eu ganhar o suficiente, eu preciso trabalhar umas 12 horas por dia durante a semana. No fim de semana eu só tenho horário pra começar. Se não for assim, não consigo pagar minhas contas. Então o jeito é dirigir o dia inteiro’’, revela.