GaúchaZH ouviu vítima de tentativa de feminicídio, que está retomando a vida, e reúne nesta reportagem os principais locais públicos onde buscar ajuda
Com as mãos, Carla* simula a distância que ainda enxerga entre as vítimas da violência doméstica e o sistema que deve resguardá-las. Por mais de uma década, foi espancada dentro de casa na Região Metropolitana. Há três anos, quando voltava do trabalho, o ex lhe atacou a facadas — foram 12 golpes. A mulher, hoje com medida protetiva, ainda passa por cirurgias para se recuperar das cicatrizes externas.
Para amenizar os traumas invisíveis, integra grupo de acolhimento oferecido pela Justiça. Como sobrevivente, defende que a rede se fortaleça, os agressores sejam punidos e as vítimas tenham mais segurança para denunciar. GaúchaZH reúne nesta reportagem serviço com órgãos públicos que podem orientar e atender mulheres que tentam se desvencilhar da violência.
Quando era espancada pelo marido, Carla não conseguia nem mesmo falar sobre as agressões. Por mais de uma vez chegou a ir até a polícia, mas desistiu de realizar o registro. Não se sentia segura e receava que o companheiro ficasse mais violento.
— O que precisamos é estreitar esse abismo ou não vamos vencer a violência. As coisas andam juntas, mas ainda distantes. Fui descobrindo tudo sozinha. As pessoas falam: existe determinado órgão. Mas chego por onde? A mulher não sabe qual a função, quais os direitos dela, onde vai, quem te esclarece, quem te apoia. Existem as leis, as coisas estão se aprimorando, melhorando, a rede de apoio está mais fortalecida, mas o Estado ainda não consegue te dar segurança. Precisamos também, de forma cultural, melhorar nossa visão em relação à agressão. Não culpar a mulher. E, mais do que isso, punir o agressor — avalia.
Carla vivia uma relação possessiva, onde o marido controlava a vida dela dentro e fora de casa. Por 38 vezes, foi espancada no rosto e se lembra de cada uma delas. Por outro lado, o companheiro se mostrava prestativo e bom pai, o que tornava a separação complexa. Muitas vezes, Carla se culpava pelo terror que vivia. Só conseguiu encerrar a relação após ser hospitalizada com lesões graves. Pensou que o horror havia acabado e retomou a vida, mas foi atacada novamente.
— Estou armado e vou te matar. Se tu saltar, te mato aqui mesmo — anunciou o ex, com a mulher dentro de um veículo.
Foram 12 facadas no peito, abdômen, mãos e perna, além de socos no rosto, enquanto ela se debatia. Carla gritava para que as pessoas que se aglomeravam no entorno do veículo chamassem a polícia. Mas não era atendida.
— Ele vai me matar! — implorava ajuda, pouco antes de conseguir saltar do carro.
O ex acabou preso, mas hoje aguarda julgamento em liberdade. Carla permaneceu hospitalizada por duas semanas, passou por oito cirurgias para reparar as sequelas, uma delas para reconstituir a mão. Frequentou sessões de fisioterapia e radioterapia para cessar a dor provocada pelas cicatrizes.
— É uma batalha de sobrevivência e de recuperação de tudo isso — resume.
A mudança, neste período, não tem sido somente externa. Por oito meses, teve apoio psicológico, e hoje é uma das integrantes do Projeto Borboleta, que acolhe vítimas de violência doméstica. Conta que o dia mais difícil foi subir sozinha as escadas do Fórum. Pensou que não conseguiria entrar na sala. Lá dentro, encontrou o abraço que buscava e passou a compartilhar as dores em um grupo com outras mulheres. Agora, compreende que estava envolvida em um ciclo de violência.
— As histórias são muito parecidas. Muito cruéis. A gente entende a dor do outro. As pessoas querem saber o que a gente fez para aquilo acontecer. Sempre a culpa é da mulher. Às vezes, é mais fácil sobreviver ao teu agressor do que à sociedade em que a gente vive. Tu passas a sofrer todos os outros julgamentos e nem sempre tem estrutura. Por isso, o grupo nos fortalece, nos ajuda — relata.
Carla, que trabalha no mesmo local que seu agressor, não abandonou o emprego, embora por vezes tenha sido criticada por isso. No mesmo semestre em que foi esfaqueada, concluiu a faculdade e hoje cursa pós. Acredita que seguir é também a forma de dar força à filha adolescente e representar as que não tiveram a chance de sobreviver. Em 2019, cem mulheres foram vítimas de feminicídio no Rio Grande do Sul.
— O meu assassino trabalha comigo. Mas hoje não é mais para mim só. É falar por mim, mas falar por quem não teve a chance de sobreviver. É algo maior. Está acontecendo um extermínio de mulheres. O homem não só mata. A forma como ele mata é muito cruel. A forma como ele agride é muito cruel. Quando a gente sobrevive, a gente tem muitas sequelas. E muitas não conseguem se refazer. Há diferença entre viver e sobreviver. A gente tem de voltar a viver e não só sobreviver. A gente está sobrevivendo hoje — descreve.
Por que não identificamos a vítima?
A mulher de 45 anos, espancada 38 vezes e também esfaqueada pelo ex-marido, não é identificada nesta reportagem por questão de segurança. A profissão e a cidade onde aconteceram os episódios também não são informados na reportagem para evitar expor a vítima.
Feminicídios
No ano passado, somente na Delegacia da Mulher em Porto Alegre foram informadas, em média, 25 ocorrências por dia envolvendo violência contra mulheres — 9.166 registros no total. No mesmo período, foram obtidas pela delegacia 5.990 medidas protetivas para vítimas. Ainda na Capital, seis mulheres foram assassinadas por questões de gênero e 64 vítimas de tentativa de feminicídio. Em 2017, ano em que Carla foi atacada pelo ex-marido, esse número era maior: 90 casos.
— Não é uma fatalidade, não é um acidente. É diferente. E isso tem de ser tratado diferente. A pessoa que violenta precisa violentar para se sentir com poder. É preciso ouvir mais as mulheres. E entender quem é esse agressor. Se ele é usuário de drogas, tem deficiência mental, se ele é um psicopata ou se é uma pessoa de má índole. E a gente tem de tratar cada caso. Tem de compreender quem está por trás. E parar de responsabilizar a mulher por tudo — opina a vítima.
Quando conseguiu romper a barreira e falar sobre as agressões, apesar dos julgamentos, ela encontrou apoio em outras mulheres. Chegou a ouvir relatos de vítimas que enfrentavam a mesma situação e permaneciam caladas. Para aquelas que vivem em meio à violência, sugere que busquem algo para se se fortalecerem e peçam ajuda:
— Não dá para viver só nesse ciclo. Tem de se olhar. Ver teus outros sonhos. Avaliar essa pessoa que está contigo. Buscar ajuda. Denunciar sim, mas com segurança. Se fortalecer, independente de religião, de crença. Colocar filtro no ouvido para deixar coisas boas chegarem. Todo mundo quer sair da violência. A gente só quer a vida de volta. É um exercício diário de sobrevivência, de luta.
* O nome usado nesta reportagem é fictício.
Ato neste domingo
Porto Alegre fará parte das manifestações que estão acontecendo em todo o Brasil contra o feminicídio. O ato organizado por mulheres e artistas da Capital e região, de forma autônoma e espontânea, é em repúdio à violência de gênero e em memória daquelas que morreram por serem mulheres.
Entre as vítimas que serão lembradas está a artista Maria Glória Poltronieri Borges, estrangulada em uma cachoeira em Mandaguari, no Paraná, no fim de janeiro. O Ato de Repúdio ao Feminicídio – A vida pede passagem será realizado no domingo (9) no Parque da Redenção, a partir das 16h.
Como ajudar
- Não culpe a vítima: a mulher já se sente culpada pelas agressões que sofre. Não reforce esse sentimento. Se ela for agredida, não pergunte o que ela fez para que isso acontecesse, nem diga o que ela deve ou não fazer, apenas oriente e ofereça ajuda.
- Dê apoio: esteja disponível para ir a uma delegacia, hospitais, separar documentos etc. Buscar ajuda sozinha pode ser muito difícil.
- Não abandone a vítima: mesmo com seu apoio, a mulher pode não querer denunciar. Nesse momento, muitas pessoas entendem que ela, então, aceita as agressões. Isso não é verdade. Não a abandone nem diga que ela merece estar passando por isso.
- Entenda o ciclo: é importante compreender que a vítima está envolvida em um ciclo, que inclui fases de afeto, tensão e agressão. É muito difícil se reconhecer em um relacionamento abusivo e ainda mais ter forças para sair dele. Informe-se para saber como lidar com isso.
- Ofereça informação: repasse a essa mulher orientações sobre os direitos dela e os locais onde ela pode buscar ajuda na sua cidade. Uma mulher que conhece seus direitos tem mais força para buscá-los.
- Escute: as vítimas reclamam muitas vezes de não serem ouvidas. Ouvir exige atenção e empatia. Lembre-se: as pessoas são diferentes e têm tempos diferentes.
- Busque ajude: para poder auxiliar uma vítima, também pode ser preciso ajuda. Ver uma amiga ou familiar no ciclo e não conseguir auxiliar pode ser complexo de compreender. Faça parte das redes de atendimento, informe-se e busque apoio para si mesma.
O ciclo da violência
Tensão
O agressor mostra-se tenso e irritado por coisas insignificantes, com acessos de raiva. Ele também humilha a vítima, faz ameaças e destrói objetos. A mulher tenta acalmá-lo e evita condutas que possam “provocá-lo”. Isso causa sentimentos como tristeza, angústia, ansiedade, medo e desilusão. A vítima tende a negar que isso está acontecendo, esconde das outras pessoas e, muitas vezes, acha que fez algo de errado. Essa tensão pode durar dias ou anos.
Agressão
A tensão acumulada se materializa em violência, seja verbal, física, psicológica, moral ou patrimonial. A mulher se sente paralisada. Ela sofre de tensão psicológica severa (não consegue dormir, perda de peso, cansada, ansiosa) e sente medo, ódio, solidão, pena de si mesma, vergonha, confusão e dor. Ela também pode nesta fase tomar decisões, como buscar ajuda, denunciar, esconder-se na casa de amigos e parentes, pedir a separação e até mesmo tirar a própria vida.
Lua-de-mel
É quando o agressor se mostra arrependido e amável para conseguir a reconciliação. A mulher se sente confusa e pressionada a manter o relacionamento. Ele diz que “vai mudar”. Há um período relativamente calmo no qual a mulher se sente feliz por constatar as mudanças, lembrando dos momentos bons. Como há a demonstração de remorso, ela se sente responsável, o que estreita a relação de dependência entre vítima e agressor. Ela sente medo, fica confusa, se culpa e se ilude. Até que a tensão retorna e, com isso, as agressões.
Fontes: Instituto Maria da Penha, Polícia Civil, Brigada Militar, Tribunal de Justiça do RS e escritório Gabriela Souza – Advocacia para Mulheres.
Onde pedir ajuda contra a violência doméstica em Porto Alegre
GaúchaZH listou locais com atendimento público que têm iniciativas para acolher e proteger mulheres vítima de violência doméstica, além de responsabilizar os agressores:
Brigada Militar
- Telefone: 190
- Horário: 24 horas
- Serviço: atende emergências envolvendo violência doméstica em todos os municípios. Para as vítimas que já possuem medida protetiva, há a Patrulha Maria da Penha da BM, que fiscaliza o cumprimento. Patrulheiros fazem visitas periódicas à mulher e mantêm contato por telefone. A Patrulha está presente em 46 municípios.
Escuta Lilás
- Telefone: 0800-541-0803
- Horário: de segunda a sexta-feira, das 8h30min às 18h.
- Serviço: oferece orientação jurídica, psicológica e social. Busca acolher, escutar, avaliar cada situação e referenciar a rede de atendimento do município onde a mulher reside.
Disque-Denúncia
- Telefone: 180
- Horário: 24 horas
- Serviço: auxilia e orienta por meio de ligações gratuitas.
Fonte: Gaúcha/ZH
Foto: Félix Zucco / Agencia RBS